Quando os nômades viraram pipoca com Steven Spielberg

A cidade guardava sua tradição noticiosa, de viagens. Tudo era motivo para se dizer que iam à Flórida ou a Floriano. Tudo era mote: imediatamente à idéia, surgia o efeito de se viajar. Podia-se ir à China ou a Araripina, Aguiar da Paraíba ou Aguiar de Portugal.

E tudo era motivo. As pessoas viviam em constante iluminação, de malas prontas, nas portas, nos carros, nas esquinas, nos ranchos. Nesse tempo, havia bonde para ir à Igreja. O rádio, bem falante e palpitoso, cutucava os ouvidos de todos com os principais pontos turísticos da cidade Tal, com a melhor rota para se ir ao porto de Não-sei-das-quantas, com um novo percurso para se chegar a fazendas encachoeiradas em xis lugares diferentes.

Era tudo muito fácil. Podia-se ir brincando a Volta Redonda, ou talvez, dar a volta ao mundo mesmo. Era extremamente simples e barato ir tanto para Belém daqui, quanto para Belém de lá. E praias?

Só as praias dos pacotes turísticos merecem, aqui, um parágrafo. Como a cidade de partida era distante do mar, os pacotes que incluíam delícias praieiras eram os mais freqüentes. Promoção para qualquer água salgada. Todos os dias, todas as horas, aparecia gente para ir a todo tipo de praia: a paradisíaca, a que tinha a cerveja mais gelada, a de nudismo, a que tinha lagostas e camarões a preço de lagostas e camarões, a que tinha lagostas e camarões a preço de banana, a que tinha banana, a que tinha o grupo de pagode, a de água doce, a que era gay, a do reggae, a que era cult, a que era etc. Era muita viagem.

Quando todo mundo ficou enjoado de viajar, o século foi rompido, vieram crises estranhas de bolsas, dólares, casamentos, comportamentos e, enfim, crises insubstituíveis. A cidade teve que reativar a sua tradição, construindo outro método tradicional.

Num fórum sobre o assunto, a sociedade organizada (e, talvez, civil), fez chegar a decisão: “vamos retornar”. E aí, iniciaram um processo de não-viagem, de fixação eterna. Essa roubada filosófica, em homenagem aos colegas Fernando Caldeira e Kátia Pinheiro, que estudam as questões aquém-vida ou do presente pasteurizado pela coisa do nada. (?)

Bom, mas, na cidade, tudo foi articulado no dia-a-dia do povo para que nenhuma viagem fosse programada, nenhum pacote fosse oferecido, nenhuma praia fosse agendada, finais-de-semana e feriadões não existissem no calendário, e malas fossem desfeitas.

Tudo foi virando motivo para ficar em casa, cada vez mais; em casa, em casa, cada vez mais em casa. Até que as portas foram se fechando, as janelas, os telhados e as chaminés. Crianças nem sonhavam em brincar nas calçadas, não se ouviam moto-taxistas com suas fantásticas máquinas barulhentas, ou carros com suas músicas fulminantes nos bares. O prefeito, com dois telefonemas, resolvia o seu dia de trabalho. As repartições foram se enfeitando de teias-de-aranha, e rádios, jornais e TVs não anunciavam qualquer viagem. Até o céu era tedioso. Ninguém se conhecia mais porque o mundo era ficar trancado e parado, de molho, esperando uma morte lenta.

As pessoas começaram a criar microcidades dentro das suas casas. Visitante que por lá chegava, coitado. Teria que se auto-viajar ou fixar-se nele mesmo, dentro de uma metrópole em êxtase urbano e solitário. E o mais grave: as vilas e povoados, nasciam nas crianças indefesas, que não sabiam o que era brincar de “Ciranda, Cirandinha”. Só se fosse pela Internet.

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