A Corte do Rei Netuno

Eu poderia falar de tanta coisa. Poderia falar que nossos irmãos venezuelanos estão vivendo sérios problemas. Poderia falar da iminência de uma guerra civil com a nossa fronteira. Eu poderia falar de tanta coisa. Poderia falar que a área das Ciências Humanas está recebendo com insatisfação o escanteio das disciplinas de Sociologia e Filosofia, que podem ser completamente esquecidas do currículo escolar. Poderia falar de tanta coisa. Poderia dizer que os trabalhadores brasileiros estão prestes a perder tantos direitos conquistados, há anos, com debates, manifestações e dignidade. Poderia falar de tanta coisa. Poderia, inclusive, falar que estamos precisando de mais manifestações pacíficas e conscientes.

Eu poderia falar de tanta, tanta coisa. Poderia até dizer que neste exato momento em que você está lendo esta crônica, sete mulheres estão sendo violentadas de alguma forma. Poderia falar que temos prisões entulhadas de inocentes e não inocentes, em celas com cinquenta onde só cabem dez. Poderia falar de tanta coisa, mas muita coisa mesmo. Poderia falar que o Papa Francisco encarnou uma responsabilidade arriscada no mundo atual: ser democrático, ouvir as diferenças, respeitar os contrários; ter dado, por exemplo, sua primeira entrevista ao assumir o cargo a um jornalista italiano que se declara ateu convicto e crítico das religiões. Poderia dizer aqui tanta coisa. Poderia dizer que as diferenças continuam sendo perseguidas, em diversos segmentos: espiritualidade, sexualidade, mentalidade. Poderia falar que neste exato momento há milhares de crimes contra o meio ambiente.

Poderia até falar de outras coisas. Poderia falar que neste exato momento há muitos hospitais públicos clamando por atenção; nestes mesmos lugares, doentes sublocados em corredores. Poderia falar também que os profissionais que atendem esses doentes estão vendo seus salários cada vez mais mirrados e suas aposentadorias cada vez mais distantes ou fantasmagóricas. Poderia falar tanta coisa. Poderia falar que há uma ilusão generalizada da classe que se diz média; ilusão em achar que continua média e está numa situação mais ou menos confortável. Poderia dizer tanta coisa. Poderia comemorar que amigos brasileiros moram em Portugal e que estão relativamente felizes com os nossos patrícios.

Poderia falar tanta coisa. Poderia falar de tanta coisa que faz parte do meu repertório, do meu imaginário, do que estou vivenciando ou estudando. Poderia falar que neste exato momento em que você lê estas minhas conjecturas, alunos de escolas públicas estão se dedicando ao tráfico. Poderia dizer que adorei ter lido o romance A Gorda, da moçambicana Isabela Figueiredo, mas que noventa e nove por cento dos meus alunos não querem saber de gorda, de Isabela, de Moçambique, de Brasil, de Literatura, de leitura. Poderia dizer que neste exato momento pelo menos dez crianças estão sendo vítimas de pedófilos, que se organizam em redes secretas, trocam informações, divertem-se.

Poderia dizer tanta coisa. Tanta coisa, tanta coisa, tanta coisa. Poderia até dizer. Poderia. Poderia passar o dia tentando dizer. O dia inteirinho. Mas vou falar mesmo é da lagosta azul. Quando achamos que a Natureza é perfeita e estamos satisfeitos com isso, ela vem e nos arrebata, vem e nos sacode, vem e nos acorda, vem e nos surpreende com seus mistérios. Vem e diz: existe um poder central no universo. Eis que o pescador, na sua labuta, se depara com uma lagosta azul. Como se não bastasse o animal repleto de dobraduras, pontas, lanças, entremeios, verrugas, bolotas e pontilhados, nasceu de cor azul. O pescador da região de Maragogi, nas Alagoas, admitiu que o fenômeno é raro. Ora, pra mim é raríssimo. Mais que raríssimo, se existir um superlativo além, além-mar. Por alguns momentos, esqueci de tudo quando fiquei sabendo da lagosta azul. Pensei assim: a lagosta azul é, sim, um tema bom de se falar. Ela mora lá, na Corte do Rei Netuno, onde a cor azul é predominante. Azul e outros tons azulados, tons sobre tons, camadas que nosso olhar só enxerga se desligado dos outros temas chatos, que entristecem. Na Corte submarina, o povo é feliz da vida, curte as águas mornas e salgadas, vive em paz. É pura festa. Aí sim.

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