Paixão

Sentei para escrever sobre paixão. Que bicho é, o que seria, como se contrai, leva quantas xícaras de farinha, tem cheiro de mato, consome quantas velas…? Abri o dicionário. “Paixão significa intensidade, ardência, dominação”, suspirei. Seria o oposto da fé verdadeira, lembrada nesta semana? 

O poeta português Fernando Pessoa talvez estivesse apaixonado quando disse:

“Sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados, ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, realizar em si toda a humanidade de todos os momentos, num só momento difuso, profuso, completo e longínquo”. Prefiro acreditar no poema como resultado de uma oração.

Depois de recolher os grãos de fertilidade, que me foram emprestados por uma série de brisas, resolvi administrar as minhas porções. As que não são mágicas, naturalmente, e precisam de um bom sopro de realidade. As que me chegam em forma de um aceno, de uma laranja, de uma cantiga, de um tapa. De um telefonema.

Depois de recolher a fertilidade para grãos insatisfeitos com eles mesmos, fui amaciando as minhas agonias. Por que um grão não se admite como grão? É o mesmo que se pensar de um indivíduo espinhado por uma rosa perversa, rubra e intensa, chamada de paixão. A de Cristo, sem dúvida, é merecedora dos grãos de fé, que, para Ele, poderiam ser menores do que os da mostarda. Eu nunca vi grãos de mostarda, mas acredito em Cristo e na persistência do ser humano que crê.

A Paixão de Cristo é a fertilidade. E não se descobre somente como um martírio, como a subida aos calvários de sempre, como as cruzes, como as injustiças. A de Cristo é a lembrança que move a montanha com as mãos.

Penso nos grãos da mostarda e não só movo, como construo, derrubo, codifico e transponho a cordilheira que se revigora na minha frente.

Eu, ao contrário da salvação, continuo pedindo a Deus, em todas as semanas santas, que multiplique os grãos da mostarda, que frutifique neles a minha dignidade. Antes, peço pelos que nem se lembram dos grãos, nem da Semana, nem da mostarda, nem das montanhas.

A paixão dos homens, tão diferente e tão infiel a de Cristo, é o fogo que se sustenta na carne. É uma paixão exigente. É a carne incendiária e sem o mínimo da vontade de mover certas montanhas espirituais aliadas a grãos de mostarda. Percebi que a paixão dos homens não se entrega ao jejum.

Eu, depois de recolher os grãos, costumo me trabalhar em orações, para alimentar uma árvore bem maior e mais fértil. Uma árvore dolorosa, às vezes, porque cresce comigo, bem menos criança, sem o coelhinho da Páscoa (com olhos vermelhos e pêlo branquinho) e sem ovos de chocolate.  

A Ressurreição deveria existir nos compartimentos das ações, e não precisa de datas e nem de intermediários. Descobri. Pedi a Deus, depois de me achar com várias abelhas zoadoras e voadentas, com um monte de montanhas de algodão ou de geléia, com uma constelação submersa, com uma indolência enlatada na cabeça, que anexasse as minhas paixões a uma fé pura e limpa.

As paixões pagãs e crucificadoras da mente são o exercício da fé individualista. Pedi a Deus que me arquivasse num micro de poucas dimensões, para que eu, apertada, ali, pudesse reconhecer que o humano necessita da Paixão diariamente, para se reconhecer, para se iluminar, para florescer, para apostar e para apanhar um pouquinho.

Pedi a Deus, pedi, pedi, pedi tanto, e espalhei em meu corpo pequenos grãos de coragem. De repente, carvalhos, pinheiros, cajazeiras, goiabeiras e amendoeiras foram nascer nos meus pés. Agora sei que, ao caminhar, vou saber para onde vão as paixões terrestres. As árvores, no entanto, só se contentam em crescer para o alto, esguias e frondosas. Que maravilha.

Meu leitor encantado, Deus não abandona. Ele reage.

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