Padre Cícero: por que a Igreja mudou?

Padre Cícero morreu amargurado. Punido pelo bispo do Ceará e pela Inquisição, cerceado no exercício de muitas funções sacerdotais. Durante mais de dois terços de seus 90 anos de vida, ele lutou para ser perdoado. Seu infortúnio começou quando se propagou o “milagre” da transformação da hóstia em sangue na boca da beata Maria de Araújo, em 1889, seguido da incontrolável atração de fiéis a Juazeiro, formando-se a onda de fanatismo. A luta de padre Cícero para provar sua inocência foi quase inócua.

A reparação só chegou agora, após 81 anos de sua morte.

Pelo menos é o que se deduz do anúncio e da leitura de trechos da carta, enviada pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, ao bispo do Crato, dom Fernando Panico. A correspondência, de 20 de outubro de 2015, só foi divulgada em dezembro, de forma parcial, sem o inteiro teor. Segundo o jornal O Povo, de Fortaleza, 30 mil pessoas ouviram a leitura da carta-mensagem, feita por dom José González, ex-bispo de Cajazeiras, na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A mesma capela onde, em 21 de julho de 1934, foi sepultado o corpo do padre Cícero. Nada mais simbólico.

Todas as tentativas de obter o perdão, antes e depois de 1934, foram frustradas. Agora ocorre a mudança. Fruto de grande mobilização intelectual e de massa, a diocese do Crato requereu a “reabilitação” do padre Cícero, requisito básico para a instauração do processo de beatificação, passo necessário à santificação. Equipe de especialistas do Vaticano interpretou que “reabilitação” equivale a recuperar as ordens suspensas, o que, à luz do direito canônico, seria ato jurídico-religioso impossível, posto que padre Cícero já havia falecido.

Como solucionar o imbróglio?

Promover a “reconciliação” da Igreja com o padre Cícero. Vale dizer, trazê-lo novamente ao seio da Igreja Católica Apostólica Romana, da qual foi marginalizado pela Sagrada Congregação do Santo Ofício, em 1894, em processo formal, instruído, em parte, pela hierarquia católica brasileira, fonte de informações e avaliações negativas. A história desse intrigante episódio histórico registra a influência decisiva de, pelo menos, duas autoridades eclesiásticas: dom Joaquim José Vieira, bispo do Ceará, e dom Joaquim Arcoverde. Este, contemporâneo de Cícero no colégio do padre Rolim, de Cajazeiras, na década de 1860.

Então a Igreja mudou?

Mudou. A Igreja oficial mudou. Demorou, mas fez o mea culpa. Veja-se este trecho da carta do chanceler do Vaticano: “Mas é sempre possível, com a distância do tempo e o evoluir das diversas circunstâncias, reavaliar e apreciar as várias dimensões que marcam a ação do Padre Cícero como sacerdote e, deixando à margem os pontos controversos, pôr em evidência aspectos positivos de sua vida e figura, tal como é atualmente percebida pelos fiéis. É inegável que o Padre Cícero Romão Batista, no arco de sua existência, viveu uma fé simples, em sintonia com o seu povo e, por isso mesmo, desde o início, foi compreendido e amado por este mesmo povo”.

A longa carta, escrita por recomendação do Papa Francisco, ainda não foi divulgada na íntegra. Lamentável. Afinal, o documento mexe em fatos históricos que transcendem às fronteiras da Igreja. Mexe com as pessoas, fiéis ou não. Por isso, é preciso saber mais a respeito do olhar supremo, atual, da Igreja oficial, que mudou para ajustar-se ao sentimento e a fé do povo. Para este o padre Cícero já era santo. Desde sempre.

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