O Zé da Paixão e do Sertão

Nossos encontros são alimentados pelo afeto e pela alegria.

Um homem simples, pincelado pelos contornos e traços de um personagem de Guimarães Rosa.

Sua pequena estatura e sua tez bronzeada pelo sertanejo sol de nossos lugarejos o definem como tantos outros nossos que, em assentamentos e pequenas propriedades, reinventam a vida, a natureza e a existência nas tramas e teias de uma convivência possível do homem com o meio ambiente.

A luta pela terra e pelo direito a nela habitar e produzir comida, dignidade e humanidade nos aproxima, através da CPT Sertão. Quanta sabedoria e leitura política de mundo traz aquele homem que, nos calos das mãos, nos talhos do rosto, na expressão facial serena, sempre interpreta a realidade com as teorias e conceitos elaborados nos laboratórios da vida e da coexistência com outros tantos que, como ele, caminha na marcha pela construção de um mundo onde planeta, natureza, homem e dignidade sejam substantivos, mas também verbos conjugados no tempo e na derivação do presente que se fazem com lutas, conquistas e sonhos.

E lá está Seu Zé Félix.

No Assentamento Bartolomeu, as margens do Açude Bartolomeu, no município de Bonito de Santa Fé, sua casa e seu lote são uma ode a vida. A horta cultivada com cuidado, com defensivos naturais, sem venenos ou recursos artificiais que empestam e envenenam solo, água e gentes. Quanta alegria brilha em seu rosto ao mostrar o viço da alface que cresce saudável, do coentro e da cebolinha, da batata doce, da macaxeira que, colhidos e consumidos pela família, são abundantes em sempre estarem expostos na Feira Agroecológica de Cajazeiras, cuja iniciativa ele é um dos pioneiros e grande incentivador.

E, com o mesmo entusiasmo, afinco e alegria ele defende as “sementes da paixão”. Sementes que, trazidas pelos invasores ou incorporadas dos nossos povos originários, são cultivadas em nosso semiárido há séculos e, portanto, já incorporaram as condições de adequação ao tipo de solo e clima da região. Sementes que, antes guardadas em latas de querosene vedadas com cera de arapuá, agora estão nos bancos comunitários de sementes, trazendo autonomia e, sobretudo, respeito a quem, traçando veredas da convivência com a semiaridez, reinventam outro sertão, mais humano, mais alegre, mais gente.

E, hoje, as águas do Bartolomeu sopram ventos tristes.

Morre Seu Zé Felix.

Mas, enquanto sua memória estiver presente em nós, tantos outros Josés, Zequinhas, Joãos, Pedros, Marias, Antonias, Josefas continuarão brotando nas hortas e canteiros onde germinam alface, batata e gentes.

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