O nariz do personagem

Sentindo ou não, seria como um descampado alegre. Daqueles sempre lindos e limpos. Daqueles em que sempre o personagem principal sai para pensar na vida. Ou na morte, dependendo da cabeça do autor. Querendo ou não, seria também uma ambientação rústica, coisa romanesca dos mil e oitocentos. No cenário, libélulas a tilintar pelos ares, como que procurando uma doce melodia no olhar do sujeito xis ou eme ou zê de efe ou agá ésse de não sei de onde ou quem, enfim, o personagem. O personagem que vagueia pela mente do autor, como um mosquito sem lâmpada. Transformado na sua convicção semiótica se ser, de pelo menos estar ali, entranhado em páginas e num limbo de letras e mundos, o personagem. Ele mesmo é a lâmpada. Ele todo, fixo ou alado, penugem ou carapaça. O diálogo vai chegando, ele cria voz, grita ou chora, desenvolve idéias, pensamentos, reações. Há um semblante próprio, há um nariz próprio, há todo o repertório ali. Algo está sendo revelado, mas sugerido também. E tudo vai sendo possível. Nesse interregno de silfos e criaturas cupidescas, a trama, o enredo, os outros personagens, os outros cenários, e a história vai se solidificando como um arco-íris. Ou seja: arco-íris em pedra filosofal. Querendo ou não, seria um romance. Soberanos mendigos, plebéias nobres, tímidos pássaros, riachos solitários. Tudo vai sendo possível. Dependendo da orientação da inspiração, uma rajada de vento. Que tal? Nas obras imortalizadas românticas há sempre uma suntuosa aparição do vento, um bolimento de cabelos, cavalos e plantas, idéias e suspiros. O personagem irrompe como um bravo e belo estandarte num mundo cheio de perfume. Hum. Tudo vai sendo perfumado, enfeitado. Se há sangue, armas em punho, vai sendo por amor. Se há conflito, o final pode ser satisfatoriamente triste e trágico, esperado pelo leitor já ansioso e trêmulo de verdades. Agora, mais um recorte do cenário. O personagem sai para pensar e observa lindos juazeiros, atento a um singelo cantarolar de bem-te-vis. Tudo vai sendo possível. Esqueçamos que o personagem cultiva um calo no pé esquerdo ou está com prisão de ventre. Tudo tem que estar cheiroso e as nuvens um tanto macias. De repente, o personagem se lembra, não tão abruptamente, que ali não é romance, que está enganado, que não é livro nem filme, fundo do mar ou espaço sideral. As palavras se esfarelam, bombas e sacrifícios, desumanização, hard core na alma do tímpano e sem pausa no espetáculo. Para onde iria o personagem romantizado nesses dois mil e alguma coisa? Seu corpo pode abrigar um chip ou um planeta pode estar na sua mira. As libélulas, as mais malhadas, saudáveis e esvoaçantes, apenas em redutos de equilíbrio ambiental. O riacho, não sei se teria sobrevivido. Querendo ou não, seria um romance. Cupido iria por e-mail mesmo ou com um torpedo pelo celular ou, sei não, um scrap, uma mensagem de aniversário com direito a karaokê eletrônico também. A cavalo ou de moto-táxi, de ônibus ou a pé, vai-se correndo o tempo, lembrando que poderia estar num romance. Dependendo do autor, poderia aguardar dez anos, cem anos, ali num canto de memória, treteiro, o ponto final.

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