O homem de ontem

Na cabeça um surrado chapéu de couro. No rosto os traços e marcas de vida e vivências nestas terras de sertão. De costas para o presente, a carroça puxada por burro percorria as ruas da cidade, encolhida entre veículos e pressas, transportando baldes com leite in natura que era vendido de casa em casa. Como um obediente e disciplinado exército alguns cães seguiam a carroça. A cena me atraia e comovia pela singeleza. E, diariamente, ela se repetia pelas ruas da cidade.

Mas o tempo, senhor de todas as razões, lhe tributa limitações e as recomendações familiares restringem seu roteiro as ruas do bairro. E a cena sai de meu campo de visão.  A pressa, também ingrediente de minha rotina, coloca em arquivos mortos aquela paisagem de ontens.

E, na solidão ermitã do isolamento pandêmico, a notícia de sua morte me chega com a cena de uma cadela de rua que, carinhosamente alimentada e acolhida por ele, sorrateira, segue o séquito até o cemitério. Ali, na derradeira despedida de familiares e amigos, a urna funerária é colocada no chão, ao lado da cova que lhe acolherá no estágio final da caminhada. E a cadela, vencendo as barreiras de pernas e olhares consternados, olha compungida para o amigo. Delicadamente fareja o vidro que interdita seu rosto inerte e, afetuosamente, deita a cabeça sobre o caixão ao som de leves grunhidos de despedida.

A cena comove todos os presentes, como, outrora, me comoveu sua imagem de carroça e exército de cães percorrendo as ruas da cidade. E, novamente, me revigora a esperança de humanidade que, em fiapos e frangalhos, teima em não nos abandonar em definitivo.

O nome do senhor da carroça o seu filho me disse. Mas, além do nome civil, para mim o que se desenhou com suave entalhe foram os gestos de irmandade entre homem e bichos. Uma relação de parceria, cumplicidade, amizade até. Quantos segredos partilhados! Quantos desejos divididos! Quantos mundos sonhados onde gente, passarim, cachorros, mata-pasto, juazeiro, saguis, pedras, riachos, ladeiras, mandacarus, bem-te-vis são flancos de uma mesma composição que, destoando de nossa irracional lógica de mercados e lucros, alinhava possibilidades de viver com paixão e humana idade.

E, na solidão do cemitério, quando os humanos se recolhem na tristeza e saudade, apenas a cadela, de cócoras, vigia a cova onde o amigo se esconde deste mundo. Espicha os caninos olhos e nada vê. Um grunhido longo e doído sopra no ar de fim de tarde. E apenas Tom Jobim e Paulo Jobim consola sua paisagem, dizendo: “Passarim quis pousar, não deu, voou/ Porque o tiro feriu mas não matou/ Passarinho, me conta então, me diz:/ Por que que eu também não fui feliz?”

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