O elemento

Até hoje não se sabe se o crime faz mesmo fronteira com o mal. Quem puder comprovar, por favor, escrever gentilmente para esta coluna. Pode escrever criminosamente também. Ou à paisana.

O crime pelo crime talvez seja maldoso, talvez seja repugnante, mas o seu disfarce é turvo, dúbio, incerto. 

Mascarado de ternura, o crime é o bem de gravata, de carrão e voz ativa. Diariamente, toma café com pão na nossa casa. Senta à mesa, faz uma oração cabisbaixa e sorri para todos. Esconde as armas para o momento da sobremesa e, antes, vai se deliciando com as mastigações.

O crime é o culpado. Ele mesmo se produz na frente do espelho do nosso quarto. Ele abusa na maquiagem, é travesti, é homem, é mulher, é criança. É o garoto que não vai à escola, que se lambuza de cola de sapateiro. É a menina da nicotina, que se vende aos 11. É a rapaziada cigana que troca, compra e vende e, inclusive se mata, por poucos gramas de pó. O que diria o saudoso rapé?   

O crime está metralhado para a vida e dialoga com os nossos doutores. Sem o crime, não há o complemento da feira, nem aquela viagem de janeiro, nem aquelas roupas de grife, nem aquele riso escabroso.

Sem o crime, não existiria tanto intercâmbio. A máfia criminal é a rainha da comunicação, é o pombo-correio do morro, é o código da carta sigilosa, é o telefonema anônimo ou grampeado. Sem o crime, não existiriam tantas pontes: aquele carro que espera naquele local que vai para aquela cidade que esconde aquele informante que desembolsa aquela quantia para pagar aquele frete que carrega aquele outro dinheiro que serve para negociar.

O crime é o discurso do advogado do diabo. O crime é o juiz que diz sim ou não quando e por quanto quiser. O crime é o fazendeiro, o industrial, o político, o banqueiro, o cosmopolita. Tão desaforado e cínico, guarda as suas figuras folclóricas: Lampião, Escadinha, Mão-Branca, Papa-Figo, Lúcio Flávio, O Maníaco do Parque.

Para ser criminoso, basta ser covarde. A lei mal elaborada é mãe e pai dos covardes que estão em toda a parte: no flagrante, na esquina, no supermercado, na sorveteria, no abandono.

Até na ficção, o crime resiste ou se prolifera como formigas em época de chuva. Ilusório, vai chegando e transportando o alimento esquisito, que será injetado na realidade. É que o crime não agüenta ficar no faz-de-conta. Ele não suporta ser romance policial, novela, mocinho e bandido, xerife, caubói, cavalo baio. O crime quer ser você e eu, nosso lar-doce-lar. Ele quer ir ao trabalho, à festa, ao campo, à zona. Ele quer participar.

O crime se satisfaz nas formas, nas caras, nos caras, nos investigadores. “Mãos ao alto!”, ele diz, nos ouvidos do perito, na porta da cadeia e na qualidade das algemas.

Sem o crime, não há policiais e sem estes o crime não se realiza, não se admite como o tal. Na verdade, o crime não precisa mais ficar se escondendo da polícia. Hoje, o crime é também a polícia. É coronel, tenente, sargento, cabo e soldado nas rodas da fortuna, nas bocas de fumo, nos salões de jogo. Devo pedir desculpas aos seguintes fardados: os menos corruptos, os inocentes, os ingênuos, os combativos. 

O crime é industrializado e, consequentemente, oneroso. Ser ladrão, traficante e homicida sai muito caro. Apesar dos custos, e se o feito for bem feito, há a recompensa da fama. Depois, o bom criminoso é o bonitão, o famoso, o cheio da grana. É o bárbaro, o vicking, o destruidor, o desbravador de infantes, de donzelas, de velhinhas. Não escapam os animais e as plantas.

O verdadeiro bandido é o máscara. E ele está aí, ao seu lado.

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