O dia do cassaco

Certo dia, pedi a Dona Dulce pra entrar no sótão. Seguindo um ímpeto investigativo, eu considerava urgente decifrar o aposento. Seu Gerson Carlos não queria, de forma alguma, extinguir o lugar, símbolo da construção tradicional, reduto familiar, ponto mais alto e recluso da morada. O espaço, formado por toras generosas de madeira, governava em silêncio. Entrei. Fiquei poucos minutos, sentindo um ar de filme de suspense. O cheiro era forte e se espalhava em caixas, latões, silos, sacas, estantes, acessórios de pesca. Um pouco de naftalina, aqui e acolá, talvez afugentando umidade e pequeninos animais desconhecidos.    

Seu Gerson, nosso vizinho poeta e violeiro, gostava da vida rural. Defendia suas raízes, com sua voz e seus escritos. Parece que estou escutando aquele andar arrastado, com os chinelões de couro. No quintal, o artista manteve o enorme juazeiro, por décadas. Sentava pra dedilhar a viola, compor e cochilar, à sombra do grande totem. Sol tinindo ou chuva de inverno, não importava, o pé-de-juá mostrava sua força. Mais à frente, avistavam-se outros frutos, outras árvores, plantas e mais plantas. Pinhas, gorduchas, aos tufos.

Do mesmo modo, esse recanto também atraía gangues de lagartos e lagartixas de diversos tipos de pele, amostras de dinossauros em circuitos rápidos. Ótimo. Menos mosquito. Até cobras medianas se arriscavam nas grotas. Sapos, cururus, jias, pererecas e rãs, saltadores olímpicos, brincavam com o que aparecesse, enquanto eu fugia deles.

O compacto de sítio fazia parte do meu cenário. Lá em casa, bananeira, coqueiro, goiabeira, mamoeiro, romãzeira, pimenteira. Às vezes, um charmoso milharal. Na vizinhança de muros baixos, era fácil avistar outras belas frutíferas. Lembro quando outro vizinho, um pouco mais distante, mas no mesmo lado da rua, resolveu investir em plantações de acerola. Falo de Seu Mário Moreira. Meu acesso era livre ao plantio, com auxílio da amiga Otília e seu irmão Adail Filho, sobrinhos do proprietário. A frutinha vermelha era novidade.

Que beleza de pomar nos arredores. Pássaros entoavam suas melodias, voos e esperanças. Poesia de todo jeito. Do outro lado da parede, vez em quando, porcos, bodes, cabras, cabritos, carneiros e ovelhas eram alimentados pela equipe do meu tio Pedro, Tipedim. De frente, um mundo de emoções e cores na fazenda de Seu João Batista. Tamarineira gigante, currais, estábulos, e o sagrado açude. Na rua, o agito dos carros combinava com cavalos, boiadas, carroças. E o sótão continuava quieto, aparentemente.

Muito tranquilo até que, numa bela tarde, vi, passeando por entre os caibros e linhas, um ligeiro cassaco. Na visão assustadora, no teto da minha casa, o bicho cinza desfilava, exibindo seus pelos eriçados, patas grandes e olhos vermelhos. Devia estar cansado da vida abafada e queria dar uma volta, trafegar noutros telhados. Ao que tudo indica, procurava comida.

Foi um terror, em poucos segundos. Gritei. De repente, entrou o amigo músico com um objeto estranho, uma espingarda. Em cena, o caçador, com chapéu de palha, lenço no pescoço e tudo. Averiguou. Não viu. Pressentiu. Correu. Foi embora. Nada. Ficamos na escuta. Minutos depois, o barulho. Pólvora como documento. Sem rima, sem nota dissonante, sem desafio. Seu Gerson colocou, então, o ponto final na narrativa, e destruiu o mamífero invasor.  

No dia seguinte, o sótão foi reservado pra limpeza geral, com direito a veneno espalhado pelos cantos, afugentando todos os descendentes e aderentes do visitante feioso. Dona Dulce, costureira fina, ficou cansada com tanta estripulia. Que aventura. Morar no Alto Belo Horizonte foi um aprendizado. Anos depois da captura, o cômodo em destaque deixou de ser o único, naquele pedaço da Avenida Francisco Matias Rolim. A praticidade disparou seu rifle na tradição. Estrondos e estilhaços de muitas lembranças. Acabou-se o mistério.

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