Essa fome

Ontem, percebi que um mistério me povoava. Aliás, era uma civilização de mistérios imperativos, que me encantavam e, ao mesmo tempo, impunham suas novelas ao ambiente. E o ambiente era apenas um quarto. Meu quarto-mundo: o lugar de mim mesma, no qual eu sou os meus olhos. 

Nessa fase gastronômica que me assola atualmente, cheguei ao quarto, trêmula. A fome era um pretexto para eu perceber os mistérios, fazer parte deles.

Sem pensar muito, quis saciar alguma vontade que se manifestava no meu estômago. O primeiro a ser ingerido foi o despertador: comi primeiro o ponteiro grande, dos minutos. A engrenagem estava deliciosa e, mesmo desfeita, fez tocar aquela sinfonia aguda, marcando uma hora qualquer. Vi, então, que era hora de devorar a estatueta de um anjo, cujas asas abertas sinalizavam que havia muito a se mastigar. Aquela coisa de resina colorida foi me saciando e me purificando.

Para que o conteúdo descesse melhor garganta abaixo, engoli os capilares: o gel e o creme para pentear. Uma base líquida de maquiagem foi junto. O esmalte estava ácido: foi um verdadeiro engasgo. Alguns batons estavam bons, outros, mal cozidos. O pequenino baú de bugigangas estava pronto e foi ingerido com o que havia dentro: os alfinetes, as fotografias, as moedas, os botões, as chaves.

Fui dando vazão a essa fome misteriosa, fui proporcionando essa fuga aos meus mistérios. Foi por isso que me senti um tanto farta ao comer todos os livros da estante, assim como os arquivos, as apostilas e as revistas. E o processo não demorou muito.

As cartas foram me enchendo aos poucos, e comidas após uma breve leitura. Lápis, fitas, brincos e colares foram misturados, feito uma pasta e zup: tragados rapidamente. Não pensei em quais mistérios estavam por vir e acelerei a mastigação. A boca ficou aguada quando imaginei a hélice do ventilador, com sabor de rapidez. A lâmpada me deixou tão iluminada quanto os seus 40 volts. Coloquei o guarda-roupa em pedaços: comi peça por peça, numa velocidade absurda. A cama foi fácil, até mesmo porque os lençóis e os travesseiros já estavam no intestino. Os sapatos, no momento, acho que estavam sendo absorvidos pela corrente sangüínea. Também o cabide, também a cadeira, também a porta.

Quando pensei em sobremesa, senti que o mistério estava se desfazendo. Mas meu rosto se alegrava. Quase todos os objetos do meu quarto, ao meu redor, estavam alimentando o meu organismo. Apenas um elemento da paisagem misteriosa deixou de participar da festa: o Menino Jesus de Praga, que ganhei de minha mãe.

Olhei em volta. Só estávamos eu e a imagem. Com a barriga cheia do quarto e das coisas que se infiltravam na minha ânsia, tentei me render a um mistério bem maior do que toda a minha fome. Comecei a rezar.

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