Emergência para Seu Belarmino

Um mugido pálido percorria os arbustos ressecados da fazenda de Seu Belarmino. Naquele pedaço-de-chão assombrado pelo calor, não se viam mais as sabiás beliscando os frutos das goiabeiras floridas. Talvez porque não houvesse mais flor ou qualquer rastro de fé no olhar daquela gente. Seu Belarmino pedia coragem à esposa. Dizia, tristonho, que o valor da lata d’água havia aumentado para um real. Sabia que a filha caçula tremia de sede, assim como tremiam também os bezerros que mal completavam uma semana de vida.

Será que havia trabalho na cidade mais próxima? Ouvia falar na tal da “imegença”. Achava que ea um trabalho ligeiro, temporário, elaborado para amenizar os problemas causados pela seca. “Se os vizinhos foram alistados, tenho certeza que o meu nome está lá também!”, pensava. Percorreu o comércio escasso, observando o feijão murcho, cheio de furos e mofo. A farinha de milho, então, não serviria nem para o angu que planejava almoçar no dia seguinte… Pensou em vender a velha carroça, mas não encontrou compradores. Falou até com Chico, um compadre seu, que era vendedor de cabras, mas que estava em situação pior: como morava dentro de um vale, nem vento chegava para amansar a sede do seu pequeno rebanho. Mais da metade das cabras já havia morrido. Aos sábados, um dos filhos de Chico vendia gaiolas com tico-ticos e rolinhas, porém, há mais de oito meses, nem sequer urubu se aventurava pelos céus do sítio. Seria o fim dos tempos?

Apesar dos maus indícios, Seu Belarmino foi à Prefeitura. Chegou animado. Avistou uma fila imensa,repleta de parentes e conhecidos. Num primeiro momento, não entendeu por que a maioria era de homens com a sua idade, perto dos cinqüenta. Imaginou encontrar gente mais jovem, mas, de repente, começou a lembrar que muitos rapazes haviam se mudado para o mangue distante ou até mesmo para outras cidades, além-sertão…

Depois de quase duas horas de espera, chegou a sua vez. “Vou trabalhar e, pelo menos, alimentar as vacas e garantir o leite dos meninos. Vou ver se compro umas sementes pra plantar… Se o dinheiro sobrar, vou comprar até outro burrico, porque o meu está muito maltratado…”, pensava, sorrindo, embriagado pela fome, com uns olhos faiscando daquela vontade só dele, de homem trabalhador, nascido e criado na roça, pai-de-família, cristão e temente a Deus. “Francisco Belarmino da Silva, seu moço”, dizia ele, satisfeito. O atendente, com um semblante enviesado, bradou: “O nome do senhor não está na lista. Pode vir o próximo!” Ainda procuraram outra vez, inutilmente. Não havia alistado com aquele nome.

Seu Belarmino achava que era feio homem chorar, entretanto, voltou para casa contando cada lágrima teimosa, cada lágrima insistente que caía debaixo de um Sol traidor para ele. Parecia castigo.

Naquela época, muitos trabalhadores não estiveram presentes na lista. Eles reclamaram, reclamaram… Até no rádio, ouviam-se as reclamações por eles: pediam por uma espécia de recenseamento para a Emergência; pediam por um dispositivo capaz de recrutar vários (ou todos os) agricultores ameaçados de morrer de fome; pediam por mais frentes de trabalho, desde que responsáveis pelo futuro de cada alistado.

Aquele fim-de-século era mais um ano na vida de Seu Belarmino; ano, quem sabe, embalado por tantas canções de Luiz Gonzaga.

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO GAZETA DO ALTO PIRANHAS – ANO I – Nº 1 – 1º A 09/01/1999

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