Dia de Craque

LUIZ CARLOS ALBUQUERQUE

Hoje, não sei se era craque. Na época eu juraria que sim. Afinal, eu tinha vida de craque. As pessoas falavam comigo na rua, comentavam lances, batiam nas minhas costas, as crianças me rodeavam. Aos domingos, naqueles claríssimos domingos de sol, eu adentrava o gramado comandando o esquadrão do Tabajaras como estrela principal. Não digo que o gramado era propriamente um gramado. Havia alguns focos de capim, sempre aparadinhos pelas vacas do doutor Gineto, grande incentivador do esporte bretão. O apelido – Mucuim – não me incomodava muito. De fato, eu era de pequena estatura. Talvez, mais que pequena (ou deveria dizer menos que pequena?); era baixinho, mesmo. E franzino. Mas, um raio com a bola nos pés. E, francamente, eu tinha intimidades com a redonda. Conhecia-lhe os caprichos e sabia-lhe as manhas. Me incomodava mais o costume de viverem me dizendo – “Rapaz, se você tivesse estatura, ia longe.” Besteira. Estatura eu tinha, só que pequena, como já disse. E, depois, eu não estava querendo ir longe. O mais que queria era marcar os meus gols no time de Sousa, no Nacional de Patos, no combinado de São João do Rio do Peixe.

Me interessava era ver o goleirão Aranha distribuir a bola para Moésia, temido zagueiro, que entregava para Letácio, que evoluía com a pelota dominada comendo um ou dois adversários e esticava para mim na altura da meia direita; o resto era comigo. Eu sentia o “frisson” da platéia. E os gritos que pareciam vir de longe, muito longe, de “Mucuim! Mucuim!” O traço rápido para um lado ou outro, a bola espichada com delicadeza, o atropelamento dos beques ensandecidos, o ajeitado rápido e o disparo consciente, limpo, colocado -–GOOOOOLLL, MUCUIM!, berrava Zeilto ao microfone da Rádio Difusora de Cajazeiras. Era a glória.

E teve uma tarde, que tarde! O Tabajaras enfrentava o Campinense de Campina Grande. Parada federal. Timão. Tinha técnico, roupeiro, o diabo. Veio num ônibus fretado. Doutor Gineto mandou buscar um padrão novo de camisas no Recife. O campo, cheio, a gente quase não via os pés de mato, era só gente, gente de todo o canto. Como sempre eu saí do quartinho onde os atletas trocavam de roupa puxando a fila. Não gostava de ficar no fim da fila pois parecia um mascote. Na frente todo mundo sabia: era Mucuim. O craque.

Foi uma partida histórica. Equilibrada, dura. O time visitante não conseguia impor o seu jogo. O Tabajaras jogava cauteloso e aplicado. Péto, maravilhoso jogador, coordenava as ações do meio de campo com sua maestria. Mas, a zagueirada campinense não dava moleza. Algumas investidas que fiz se perderam nas pernas enormes de um galalau sarará; ele parecia se atrapalhar com as próprias pernas mas de fato fazia era me atrapalhar. 0x0, no segundo tempo, faltando 15 minutos para terminar o prélio. A multidão em silêncio. Doutor Gineto gritando ordens incompreensíveis. Zeilto multiplicando as emoções na Difusora, descrevendo um jogo que só ele via.

Foi quando Letácio enxugou bem uma jogada, progrediu um pouco e enfiou a bola em minha direção. Dominei-a com calma, amaciei a redonda, respirei fundo e parti para o confronto com o sarará gigantesco. Fiz que ia, não fui, balancei pra lá e pra cá e o bichão parado, alerta, os olhos aboticados na bola. Fiz uma ginga, ameacei cortar pela esquerda e meti, feito um raio, com a bola dominada, colada na canela, por dentro das pernas do zagueirão. O bicho caiu sentado, os outros que davam cobertura, ficaram bestificados com o susto, o tempo suficiente para eu me enfiar em direção a baliza. Me livrei de uma rasteira desesperada, o goleiro, em pânico, veio pra cima com tudo mas, com um toque, deixei-o escangotado no barro. Enfiei-me com bola e tudo gol a dentro, fui sair do outro lado da rede, ainda com a bola dominada. Só parei quando a molecada que assistia a peleja atrás da barra me sufocou na comemoração do golaço. Dizem que o grito de gol daquele povo todo foi ouvido em São Gonçalo, já perto de Sousa. Depois da vitória histórica até o chefe da delegação campinense veio falar comigo:

“Menino, se você tivesse estatura ia longe…”

Não me importei. Eu estava me deliciando com aquela estranha e gostosa música, que enchia o pequeno cômodo que servia de vestiária – “É UM, É UM, É UM… É MUCCUUÍÍMMMMMM!!!!!”

LUIZ CARLOS ALBUQUERQUE É PSIQUIATRA E ESCRITOR

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicações relacionadas
Total
0
Share