Dancei muito as músicas cantadas por Clara Nunes na casa de Vozinha. Os discos faziam parte de uma coleção cuidadosa. Rodavam na vitrola Ipiranga. Fácil demonstrar admiração por Clara. Clara. O encanto de Clara. A voz incomparável de Clara.
O agogô faz o chamado. Bora. Atabaques. Comecemos o bailado. Lá vem Clara, singular, sem aperreio. Clara, branca, preta, multicor. Carisma recortado em doces ou fortes sinfonias, polvilhando o dom de fazer amigos. Muitos lares abriram as portas, ofereceram o aconchego do sofá, serviram o café quentinho na cozinha. Eita. Clara entrou em salões e becos, palácios e latadas, templos e quiosques. Não importava endereço, lugar social, conta bancária. Não importava credo. Arte de pensar, agir e bailar num registro simples, nas alamedas do sonho.
Chamava os telespectadores. Ganhava pelo sorriso. A graça de se fazer compreender no mundo. Mas, eu, menina, dançava e dançava. Também me perguntava e imaginava um pedaço de tudo. Ei, o que significa Filhos de Gandhi, o que é isso, o que é Ijexá, o que é esse barulho, o que é isso, como é esse compasso, quero ir a esse lugar, quero uma saia branca e rodada. Ei. Clara, Clara. Cabelo retumbante, colares brilhosos. Tiaras, flores, arcos, badulaques sem fim.
Clara se planta como a rainha da africanidade nos nossos olhares, rodopia e anima a eterna festa com outros artistas. Ao visitar Salvador, eu tive respostas para algumas perguntas que produzi quando criança, quando conheci a música cantada por Clara. Ela que nem nasceu baiana, mas era mineira, e parecia soteropolitana-raiz no meio do povo africanizado por herança e devoção. Parecia que era de todo canto que a chamasse com alegria e sinceridade. A bela canção Conto de areia, uma das minhas preferidas, parece ilustrar todo esse cenário. Que percussão linda. Outra: O mar serenou. Quero dançar agora. Imagino logo aquele ímpeto de Clara, bem adornado com o riso. Posso até ser ingênua, achando que não era jogo publicitário, mas a cantora, uma das maiores intérpretes do Brasil, me dava essa suave impressão, que ficou carimbada.
Vale a pena reviver essa negritude em Clara. Chico Buarque deve ter ficado muito satisfeito porque a sua Morena de Angola, excelente para aulas de Língua Portuguesa, encaixou belamente na voz da moça. Arte mesmo é um fenômeno que não foi, mas é, continua, permanece, magnetiza o coração, adere à mente. Cada um que defenda seu dogma, seu ritual, sua oração, sem briga, sem rinha, sem inveja. Cada um com seu respeito, item essencial para o diálogo. O recado nos batuques diverte e valoriza o sangue de um povo tão belo e tão presente.
Meu coração ainda dispara quando ouço Feira de mangaio. Espetáculo. Sivuca executa na sanfona o sumo do talento. Clara vai chamando. A brincadeira das teclas com o fole hipnotiza até os mais desavisados e não muito chegados a forró. Baião até o caroço. É lógico que me sinto entre as bancas, as vozes e os cheiros. Abocanho o verso que chama bolo de milho, broa e cocada. Mais à frente, rapadura. Certeza.