Chapeuzinho sem passado

Era um desses dias de verão mesmo. O mais simples e funcional dos verões. Chapeuzinho ligou o dê-vê-dê. Como ela gostava de shows nostálgicos ao extremo… Era um desses pinque-flóids bem psicodélicos: um setentão. Ela tomava a sua vitamina, preparava os cê-dê-rums na pasta, com o notebuque prontinho para mais um dia de intercâmbios na floresta urbana.

Pegou o metrô lotado, mais rápido do que nunca. Saltou na pequena floresta de distribuidores de software, descarregou sua pasta, pegou mais material. Metrô. Saltou na florestinha das animações virtuais: não resistiu àquelas tridimensionais rarisons-fords bem na sua frente, gravou-as em cê-dê e no disco rígido.

Metrô. Saltou na floresta dos gringos. Conversou rapidamente com aquele finlandês charlatão. “Nunca mais compro disc-mens a ele”, pensou. Trocou alguns programas em vídeo, gravados em disquete duplo e digital, com Juan, o espanhol bom-de-copo. Comprou uns chips pela Internet ao norte-americano jazzístico e encrenqueiro. Metrô, metrô, metrô. Chapeuzinho corria. Levava a sua cesta de bugigangas eletrônicas da mais última e derradeira geração. Não esquecia de tomar refrigerante: era o seu destino como jovem midiatizada. Tinha pena de si mesma por segundos. Mas era sempre tarde. Não dava mais tempo de ir à aula de japonês: isso atrasava, e muito, as suas transações comerciais com os nipônicos. Viu um cartaz de uma festa reive. Animou-se um pouco. Comprou um vestido florido pela web, mas recarregou todo o programa em Java: cada florzinha virou uma listrinha.

Chapeuzinho batalhava. Chegou ao porto. O material argeliano havia chegado. “Não posso perder esses processadores de áudio”. Metrô de novo. Seus três celulares tocaram de uma só vez. Preferiu atender o verde. Era o italiano-do-antiquário que queria vender uns cartuchos de rádio por um precinho. Ela não quis; estava sem euros no bolso.

Metrô. Finalmente, Casa da Vovó & Cia-Ltda-S.A. “Seu João Lobo vai me matar pelo atraso…”

– Por que essa boca tão grande, Seu Lobo?

– É pra ganhar dinheiro! Trouxe as encomendas de hoje?

Os dois se trancaram no gabinete e passaram horas e horas e horas ouvindo eme-pê-bê acid-tecno com uma banda de didjêis mirins africanos. Jogaram O Místico Ataque, mistura de todas as cinqüenta e cinco religiões num ótimo combate, mas sem finalidades ou perspectivas. Jogaram até cansar. Comeram sanduíches, pipocas, pizzas, chocolates e outras bobagens do fest-fud.

Chapeuzinho voltou para casa desnorteada. Foi construindo dentro de si mesma uma certeza implacável: queria ter vivido no século passado, no vinte. “Meu futuro seria luminoso?” A certeza foi ganhando fôlego.

Começou a achar que teria sido menos triste. Teria tido menos chances eletrônicas, teria poupado o seu corpo e o seu tempo. Teria lido mais, talvez. A certeza era tudo. Teria tido um chapeuzinho vermelho. E teria sido criança.

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