Boa noite, meu amor

Todos os dias ele fica em frente ao aparelho à espera do boa noite da noticiarista da televisão. Meses a fio, na ânsia do instante mágico. Agora, via-se inútil, encostado nos oitenta anos, vinte dos quais, já aposentado de tarefas burocráticas, rotineiras. Bocejantes. Antes, a vida era estúpida, mas diferente desses anos de nulidade total. Uma merda! É verdade que gozou fases de lua mel, logo após libertar-se do emprego em órgão de grande prestígio. Disso, até se orgulhara em tempos de vibrações patrióticas. Hoje, nem liga.

No começo a aposentadoria era beleza! Praias, viagens, estâncias termais, hotéis na serra, cidades distantes para fotos no gelo… Ah, o Pantanal, que maravilha! Cansou disso tudo. E a grana foi minguando. Então, recolheu-se à própria alma cheia de recordações. Tempo de êxtase da escrita. Derramou em jeito de narrativa ficcional o que ele chamou de “causos acontecidos” de humor, folclore e sexo. Consultou um amigo, mestre na arte de escrever. Olhe, é comum a gente cometer pequenos erros, lhe disse o professor com seu texto na mão, por exemplo, confundir o narrador com o autor… o narrador é personagem, pode falar na primeira pessoa ou na terceira; pode ficar oculto ou se mostrar em cena, explicou com a bondade dos sábios. Educadíssimo.

Mesmo sem ter assimilado todas as lições, poliu aqui, mexeu ali. Pronto. Publicou o livro. Em lançamento artístico e etílico vendeu livros a amigos e colegas. Um sucesso!

Isso faz tempo. Agora, sem mais orgasmo, desafoga.

– Vida de merda, Dedé, nem saco para ler eu tenho mais.

– Não acredito, que é isso? Olha, acaba de sair Memória de minhas putas tristes… é só emoção! Você vai gostar, você ainda adora Garcia Márquez?

Correu à livraria. Leu na busca do que perdera.

Ligou para Dedé, arretado, macho veio, até senti vibrações sensoriais que eu pensava que tinham sumido de vez… Ilusão. Passageira ilusão. Ele se liga tão somente naquele boa noite. Emoção fervente. Tudo o que faz durante o dia só tem o sentido da espera daquele boa noite da moça da televisão. Alegria, alegria! Ver na tela seus lábios se abrirem para o som mavioso penetrar nos seus ouvidos, os olhos fixos no olhar da menina. Linda. Inteligente. Eu sei que ela olha pra mim, fala pra mim, o velho aposentado embala-se na alucinação, enquanto, já em pé, segura o controle remoto e sussurra sua razão de viver: boa noite, meu amor, até amanhã.

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