A vida líquida

As situações se repetem em nosso cotidiano. De repente, diante de uma máquina da qual você desconhece todo o mecanismo de funcionamento a indignação pela pane ou pela interrupção nas operações. Situações que se reproduzem diante do terminal de auto-atendimento do banco, do monitor de nosso computador, do celular que insiste em não dar sinais de linha. E todos, como autômatos dos novos tempos, esboçamos reações as mais variadas: um xingamento contra seres inimagináveis, um esmurrar contra a tela que se mantêm branca a nossa frente, alguns impropérios contra o atraso do lugar que ainda permite desconexões e interrupções no fluxo das novidades pós-modernas.

Como seres de um mundo de conexões e redes, nos sentimos impossibilitados de viver ante a ocorrência de qualquer alterações que tragam variações e inconstâncias ao ritmo natural dos botões, chips, cliques, telas, monitores, mouses e outras parafernálias mil cujos movimentos e articulações ganham autonomia e se emancipam ante nossas vontades. E nos sentimos inertes diante da engenhosidade e desenvoltura com que as máquinas executam tarefas que oscilam da mais simples escritura de um bilhete até desenhos, gráficos e transações financeiras.

Os engenhos pós-modernos que, em nossos cotidianos, nos auxiliam em inúmeras atividades, são também expressões de nossa impotência diante de mecanismos e artefatos complexos e cuja operacionalização escapa ao nosso controle. As inúmeras e diversificadas funções que, por exemplo, entra na composição de um aparelho como o telefone celular expressa e referencia como, nos tempos presentes, cada vez mais nos dissolvemos entre um saber que se complexifica e autonomiza.

Ante o desempenho dos computadores, já disseminados por inúmeros rincões, as velhas máquinas de datilografia, mesmo as mais equipadas, se apresentam como retratos de um passado, restos de um tempo que caminha de costas. Nada mais que carcaças calcinadas de uma era manual e artesanal. Apetrechos como fitas cassetes, filmes fotográficos, máquinas de datilografia, gravadores manuais se anulam diante de uma parafernália de novidades que, a cada dia, envelhecem no ritmo das inovações e agregações que reciclam, descartam, temporalizam, efemerizam. Tudo é novidade de um dia. Tudo é absorvido e repugnado no mesmo movimento da aceitação e da recusa.

Nestes tempos de pós-modernidade, até mesmo os amores são lances virtuais. Os sentimentos são construídos e, ao mesmo tempo, dissolvidos na velocidade de um clique de computador, de uma mensagem cifrada que, mal redigida, revela a transitoriedade dos afetos. Tudo é líquido e escorre entre fios, conexões e redes artificialmente montadas e fragilmente pontuadas entre virtualidades e inconstâncias.

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