A verdadeira assinatura hermafrodita

Percebi que ele estava cansado. Arrastava-se, usando a sua qualidade de lagarto. Lagarto verde e marrom. Naquela fase da vida, o dorso já começava a sentir as palpitações necessárias para a mudança. Ele se enchia, por ser o único ser vivo que aceita a velhice, como uma causa ganha na sua vida dupla.

Ele foi se arrastando. Encontrou um abrigo. Aquele tronco de roseira seria mesmo ideal: sombra, cheiro e firmeza.

O primeiro dia foi árduo. Ficar grudado ali não era simples. Mas, no segundo, ele foi dormindo. O sono chegava lento e fragmentado e se misturava a uma ventania, aperfeiçoando o líquido escuro que partia do revestimento da pele macia. Alguma correnteza de feminilidade começava a se aproximar do corpo, embalsamado por um casulo.

No terceiro dia, a casca foi amolecendo e foi cedendo a um suco de cores. No quarto dia, o sono foi passando, do mesmo jeito que havia chegado, com umas crateras na sensação de dormência.

As asas foram se erguendo. Uma dança foi musicando o ar, que foi paralisando os elementos vivos ao redor, que foram assistindo ao espetáculo tão diário, mas sempre tão bizarro.

No quinto dia, ele era ela. Ela era ele nos pequenos atos. As sensibilidades se irmanavam, os gestos bruscos se resolviam, as almas pleiteavam uma definição que nunca chegaria. Pois ele era ela em versão colorida e voadora. Ela se extasiava dele ainda com os mecanismos da metamorfose, no seu corpo mulher. Ele se contemplava, em arrepios, com aquela estranha nele, presa e liberta, ainda homem. 

Ela, a borboleta, foi andando em vales aéreos, como que procurando explicar a suavidade da existência, que não necessita de macho ou fêmea ou que necessita dos dois num tempo único. Foi voando, voando, voando e, mesmo sem o ofício da sua companheira de estado invertebrado (a esperança), foi tentar soprar uma verdade qualquer no ouvido de alguém. 

Ela nem tinha nome, nem tinha o sobrenome do lagarto. Estava para ser registrada. Nesse dia, pousou no ombro do médico José Aldemir. Ficou lá, por vários minutos, sacrificando a sua arte, perdendo a agilidade das suas asas, tentando entender a diferenciação obtusa e socializada do sexo dos humanos. Foi naquele instante que o médico, ao se referir ao deputado Antônio Vituriano sobre a retirada da assinatura deste da CPI do Narcotráfico, disse que até a deputada Socorro Marques “que é mulher, que usa saias”, manteve a sua assinatura.

A borboleta quis sair, quis sumir, quis se auto-flagelar e voltar não mais a lagarto, mas voltar à semente de existir: ou seja, voltar ao fóssil do nascimento. Nem queria nascer, e ser antes como lagarto. Nem pensava em nascer, antes como a vontade da Natureza. E soprou no ouvido dele: “Onde estamos?”

Ela ainda adoeceu a memória, quando o médico disse que o deputado “não honra nem as calças que veste”.

“Por que ele não questionou apenas a retirada, sem explicação convincente, da assinatura do outro dos pergaminhos da Assembléia? Ele quis ir menos além”, pensou a borboleta, tardiamente, sem esperar mais por qualquer solução de palavras.

Para a tristeza do lagarto, dentro da borboleta, a confusão de saias e calças se enroscou na argumentação machista do médico, em cima da ausência de argumentação do deputado, que também medica. Para o cansaço da borboleta, que se deixava lagarto também, a confusão das vestes serviu de pretexto para o ataque e para a defesa: típico da política, típico dos seres humanos.

Mas ela continuava no ombro do médico. E tentava provar para si mesma que o mundo dos homens é assim, como um supermercado. E pensou, com mais clareza: “O profissional político deveria ser assexuado, sem ter que usar saia ou calça para manter uma postura. Por ser assexuado, o político não deveria ser, necessariamente, um anjo. O político é um hermafrodita: homem e mulher, povo. Ou deveria ser o povo.”

O médico, que não percebeu o ombro visitado pela borboleta intimada pelo lagarto ou pelo lagarto na pele da borboleta, ainda é político e ainda trata a política como uma curta questão de gênero. “Pouco importa que a deputada Socorro Marques seja mulher. Pouco importa que o deputado Vituriano seja homem. O político deveria ser homem e mulher ao mesmo tempo, num corpo só, numa só concepção, numa só arrancada de idéias”, pensou ela, a borboleta, tendo o lagarto como voz interior e epiderme.

O médico foi saindo. Ela ainda quis viajar para o sul, mas, imediatamente, encontrou o deputado Vituriano no caminho. Pousou no ombro dele e iniciou a caçada ao pensamento. A tristeza também veio, quando ele não se explicou direito sobre a retirada da assinatura. Falou nas rádios e nos jornais, tentou se justificar: mais da metade do universo não sentiu.

A borboleta foi voando. Foi embora. Num emaranhado perene de roupas e rubricas, ela decidiu assinar, sozinha, no vento, a sua verdade insetívora e metamorfoseada. Decidiu usar a sua assinatura para um aviso silencioso, dentro da sua fortaleza, que queria dizer que compromissos são mais do que roupas e temeridade.

Foi voando e assinando uma história, sendo lagarto, sendo borboleta, sendo viva. A sua verdade foi uma assinatura, mais verdadeira que a dos homens vestidos. Mais verdadeira que a dos políticos.

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