A montanha do Antero

LUIZ BARRETO

Melhor não tivesse eu retornado. As minhas lembranças da montanha do Antero tomaram outro vulto, diminuíram, diminuíram, chegando a bater no meu ombro. E eu que não sou alto… Que teria acontecido?

Quando criança – lá em casa do meu tope éramos três – a brincadeira em voga era de artista e bandido. O Zorro, Durango Kid e outros heróis eram a nossa inspiração e de toda a molecada daquele tempo. Eles animavam as matinées das nossas tardes de Domingo, no Cine Éden, no centro da cidade. Antes de começar o filme, tocava uma música estrangeira, talvez uma rumba, que sendo apenas musicada, para ela foi inventada uma letra que dizia: peguei a nêga no escuro, agarrei e ela gritou, o guarda que vinha atrás… e seguia com algumas indecências, que para hoje são confessáveis inocências diante do que se canta e se expõe na televisão e nas apresentações de rua.

Nas nossas brincadeiras de artistas e bandidos andávamos também pelas matas existentes, na época, atrás da minha casa que, por sua vez, ficava localizada na parte posterior do Palácio do Bispo, este, junto a Matriz da Piedade, igreja construída pelo povo de Cajazeiras que aos sábados e domingos, após a missa, incentivado pelo Bispo Dom João da Mata, quebrava e transportava, na cabeça, todas as pedras necessárias para a construção da igreja. E lembrar a torre da igreja, tão alta, tão alta, que mesmo hoje assim continua. E nós subíamos lá em cima, onde hoje fica o relógio e daquele buraco enorme víamos toda a cidade. As pessoas lá em baixo pareciam umas formiguinhas. Devia ser assim também do avião, pensava. Nada a gente contava em casa. E não era só nós que subíamos, muitos outros garotos e rapazes também escalavam aqueles degraus, na igreja em construção, sem qualquer proteção lateral. Houve até quem quisesse pular de lá de cima, num final de tarde de domingo. Foi aquele rebuliço, transtornando a vida da pacata cidade. Todo mundo olhando para cima. Vimos, quando voltávamos do cinema, outros se depararam com a cena quando iam para a missa das cinco. Contemplavam também o espetáculo todos os outros que moravam na redondeza ou os que simplesmente passeavam na praça. Finalmente conseguiram salvar aquele moço amante, que parecia apenas querer brincar de morrer.

Nos divertíamos de bandidos e mocinhos em casa, no terreiro, nas ruas em derredor. Era uma cambada de garotos: nós, os filhos de Domício Holanda, os de Tota Assis, os de Dona Aurília e os filhos daquelas pessoas que prestavam serviços em nossas casas como domésticas, lavadeiras, babás e outras serventias. Todas crianças, que só queriam brincar e eram iguais.

Nós nos detínhamos horas a fio produzindo revólveres de madeira. Uns bem grandes e sofIsticados, dispondo de um carretel de linha 50, marca Corrente, que era montado à guisa de tambor, com um dispositivo acionado por um elástico que lançava pequenas pedras ou caroços de feijão à distância, como se fossem balas. Outros revólveres produzidos eram bem pequenos e serviam para escondê-los no cabelo, na barra da calça curta ou no calção. Eram usados para no caso de ser preso, na condição de bandido ou de mocinho – dependia do papel que estivesse desempenhando -, surpreender o seu inimigo. E aí se gritava: mãos ao alto! Esta era a brincadeira de esconder-se, flagrar o inimigo, revistá-lo, tomar-lhe as armas, escoltá-lo, detê-lo na prisão, e tudo mais, conforme víamos e aprendíamos nos filmes, nas matinées  dos domingos. Imitávamos até o “perigo da série”, aquele clássico final do capítulo que deixava em suspense angustiante para ser resolvido no próximo filme. “Este perigo da série” hoje se repete, com matizes diferentes nas novelas da televisão. Giovanni Boccacio, que concluiu o seu Decameron por volta de 1353, nem imaginava que o seu gênero literário passasse a ser tão popularizado, chegando como todo vigor nas proximidades do terceiro milênio.

Nas proximidades do Hospital de Cajazeiras, perto do Antero, existe uma montanha de pedras, que nas minhas lembranças era tão grande que ultrapassava os limites da imaginação. Lá nós fazíamos a farra nas brincadeiras de bandidos e mocinhos. Difícil escalar aquelas imensas pedras. Amontoavam-se umas sobre as outras e admirando-as, ficava imaginando como elas poderiam Ter sido dispostas daquela forma. Eram redondas, achatadas, quadradas, triangulares, como se fossem cunhas a se fincarem no solo. Firmes, não representavam para nós qualquer possibilidade de perigo. Com dificuldades, subíamos e descíamos aquela montanha. Lá, nas nossas brincadeiras, escondíamos os nossos tesouros e as armas.

O tempo passou. E um dia procurei rever aquele lugar, até na esperança de descobrir algum objeto, que ali tivesse deixado, escondido como um tesouro. Fui e descobri que a minha montanha de pedras do Antero não passava da altura do meu ombro. Nem procurei o tesouro… Voltei simplesmente.

LUIZ BARRETO, CAJAZEIRENSE, É MEDICO RADICADO EM RECIFE (PE) E MEMBRO DO MEMORIAL DE MEDICINA DE PERNAMBUCO

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