E o defunto?

VALIOMAR ROLIM

A capital era pouco mais que uma pequena cidade, as coisas aconteciam no centro, todas as coisas. O resto era residência, praia e ponta de rua, com as exceções de praxe. Da praça Pedro Américo à lagoa e da praça D. Adauto ao Pavilhão do Chá, estava compreendido todo o centro comercial e administrativo do estado. O antigo Pronto Socorro funcionava na Rua Visconde de Pelotas, justo na esquina com a Miguel Couto, e olhe que à época não havia viaduto. Na lembrança é o mesmo que está vendo, vindo da praça 1817, no lado direito da Visconde de Pelotas, logo que passasse pelo quarteirão onde ficava antigo Cine Plaza e a mortuária estava o velho Socorrão. Entrando na plataforma de acesso ao hospital, olhando à frente, em direção à Lagoa, via-se o necrotério, e, se a porta estivesse aberta, dava até para ver se alguém havia falecido recentemente.

Era o local em que os mais diversos sentimentos foram e seriam provados. Alívio, esperança, desengano, revolta, resignação, tristeza, enfim, tudo que pode provocar e sentir a natureza humana. Aquela plataforma foi palco de muitas das mais marcantes emoções dos que viveram João Pessoa naquela época.

O plantão estava relativamente calmo para um Sábado à noite. Alguns atendimentos clínicos, as histerias de sempre, um ou outro pequeno ferimento e um bêbado que dera entrada no início do turno, fora a óbito e já estava, no dizer da crônica policial, na lousa fria do necrotério. Agora, pouco mais da meia noite, estava tudo na santa paz e os dois vigias jogavam dominó na plataforma. Sentavam-se de forma que ambos tivessem, de um lado, o acesso para automóveis e do outro, a visão do necrotério.

Joguinho maneiro, plantão tranqüilo, era só cumprir o horário para, etapa finda, ir à praia e tomar todas. O jogador de costas para a rua olhou para a esquerda, voltou-se para o companheiro tentando disfarçar e, como não viu reação no semblante do colega, nada revelou. O parceiro, dirigiu o olhar para a direita, o lado do necrotério, e, como quem não queria nada, dissimulou o que viu, fixou o olhar no outro, procurou ler um temor em sua face, nada leu, nada disse e o jogo continuou.

Os dois evitavam dirigir o olhar para o lado da lagoa. Necrotério? Nem lembrar! Quanto mais olhar? Pensaram. Como o medo queda-se entre os maiores desafios e aguça a curiosidade mais do que qualquer sentimento, às vezes supera até ao instinto de conservação, os “bravos” vigias, como se tivessem antes combinado, olharam os dois, ao mesmo tempo, e, tamanho susto, o defunto estava realmente mexendo a perna. Agora fora visto pelos dois e o Dr. Herul não teria margem para dizer que aquilo era conversa de cabra frouxo, desculpa de molengas.

Herul Sá, chefe do plantão, não podia ter reagido pior àquela inoportuna chamada. Acordá-lo no meio da madrugada por conta dum defunto que se mexia?, só podia ser obra de vigias de ressaca e delírio de cachaceiros. Ah, aqueles amarelos*!, se fizessem mais uma daquelas, seriam punidos exemplarmente. Um negócio daqueles só acontecia no serviço público, queria ver acontecer num hospital particular?, a punição viria a cavalo. E foi dormir remoendo sua raiva, talvez potencializada por estar cumprindo plantão em pleno sábado.

O dia amanhece, termina o malfadado plantão e Herul, saindo do Pronto Socorro, ainda sem engolir a contrariedade da madrugada, encontra os “visionários” vigias e, de pronto, vai logo perguntando num misto de recriminação e ironia:

– Como é? O defunto deu muito trabalho?

– Não, o defunto fugiu.

*Dá-se a designação às pessoas do povo que, por  fatores nutricionais, raciais e ambientais, não têm a pele corada da classe melhor aquinhoada. Medroso, frouxo, que amarelou.

VALIOMAR ROLIM, MÉDICO E EMPRESÁRIO CAJAZEIRENSE

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