As meninas de Dona Lilia – ela inclusive

IRAPUAN SOBRAL FILHO

O nego Idil repete decorado, sempre que pode, este trecho de machado de Assis, em A Pata da Gazela: “Um bonito pé é o verdadeiro condão de uma bela mulher! Nem me falem em mãos, em olhos, em cabelos, à vista de um lindo pezinho que brinca sob a orla de um elegante vestido, que coqueteia voluptuosamente, ora escondendo-se, ora mostrando-se a furto. Se eu quisesse estender sobre a superioridade de um pé, ia longe; não haveria papel que me bastasse”.

É que em certo dia de feira, ele recebeu uma visita em sua oficina, lindeira à sua casa [em São José de Piranhas]. Ele estava debaixo de um carro (Não sei se a Rural 1954, de Irapuan, ou a Camionete de Lampião da Timbaúba).

De tão especialista em pés, ele aprendeu a distinguir a sonoridade de algumas pessoas.

As primeiras pisadas soavam como sílabas de uma palavra escandindo vagarosamente um nome próprio. Com isso ele aprendeu, do nominalismo, que uma pessoa pode até mudar de nome, mas nunca de pisada.

Mas, na manhã daquela feira, as vibrações sonoras eram novidades, mesmo que conhecidas. Depois das primeiras, seguiram-se mais cinco sons de salão.

Desses, o mais preocupante era o último, posto que se pronunciava decidido: Do-na Li-li-a. Até parecia que a dona pisava com expressões talares: quase magistrais.

O número de pares de pés excluía o cafezinho que àquela hora era comum de Santa Francisca das Chagas. Ele impulsionou, também com pés, a estopa que forrava o chão, sobre o qual “trabalhava deitado”, e viu um mundo de “cabeça para baixo”, com mesmo cheiro que ainda guardava desde a última sexta à noite.

Quando recompôs o norte do mundo, ele deu de cara com Dona Lilia e suas cinco seguidoras. Murmurou como elas chegaram ali e imaginou delatores lá no Bar de Moisés, onde ganhara no Jogo da Vida o trocado do fim de semana passado.

Respirou fundo, o bastante para abrir o ouvido, e ouviu:

“A gente aproveitou para vir ‘fazer a feira, aqui em Jatobá’ e visitar o senhor, bem assim cobrar a conta daquele pequeno estrago no portão da saída das Mangueiras. Caso o senhor queira resolver, agora, seria ótimo. Se não, a gente volta mais tarde, caso o senhor não nos procure até as duas, no Bar de Moisés ou na Rodoviária”, disse Dona Lilia, resolvida.

Milagre é um efeito sem causa.

Elas mal saíam, quando ouviram um grito de Idil, após sentir um milagre no bolso esquerdo traseiro.

Pagou e ouviu as pisadas soarem os últimos nomes.

IRAPUAN SOBRAL FILHO É ADVOGADO. DO LIVRO ‘JATOBÁ – MEMÓRIAS DE UM CASCADURA’

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