Alma tarada

VALIOMAR ROLIM

Toda cidade que  se  preza  tem  seus doidos,
Doidos para todos os gostos: doidos varridos,
Doidos de lua, doidos para passar  bem e até
os metidos a doido.
(Zé de Sacola)

Toinha Noventa e Nove, brasileira , solteira, idade em torno dos sessenta, sem profissão, endereço variável (ora numa casa, ora noutra….), natural de algum lugar entre Cajazeiras-PB e Luís Gomes-RN, cor branca, sem sinais particulares, usando grossas lentes para correção visual, portadora de acentuada cifoescoliose e de confusão mental variável. Essa poderia ser uma descrição de nossa  personagem. Uma, não a descrição.

Por muito tempo a doida maior de Cajazeiras, não se sabe o motivo do apelido. Atribuía-se a uma referência a sua idade, uma brincadeira com a atitude dela posar de mocinha. Outra versão dava como motivo o fato dela ser a doida de número noventa e nove, tanto é que, à época apareceu uma nova doida na cidade que logo foi batizada de cem. O certo é que nunca se chegou a um denominador comum quanto ao que inspirou esse “batismo”.

Toinha era extremamente grata a Dona Erotildes Holanda que, apesar de todos os inconvenientes, permitia-lhe morar num quarto nos fundos de sua casa, fornecendo-lhe refeições e vestimenta. Demonstrava essa gratidão aos quatro ventos dizendo que ”se não fosse a família Holanda, no mundo faltaria uma banda. Porém, quando Regina, a mais trelosa das filhas de sua benfeitora, consumia a sua já diminuta paciência ela injustamente proclamava: “Todo mundo quer ser bom, mas a lua falta uma banda e quem comeu foi a família Holanda”.

Por ser uma doida completa, e não completamente doida, reinou absoluta e por muito tempo. Sabia e era sabida por todos, era aceita em todas as casas, tinha seus ídolos e desafetos também. Dos ídolos, destacavam-se o Bispo D. Zacarias, o Mons. Vicente Freitas e o ex-prefeito Otacílio Jurema.  Dos desafetos, sobressaiam-se o tabelião Zé Coelho, Ferreirinha, Pe. Gervásio e Nestor Braga que, de tão mal queridos, a simples citação do nome já motivava uma resposta que ia, desde os impropérios já conhecidos, até pauladas e pedradas, reação só superada se lhe chamassem de Noventa e Nove.

Um nome a fazia derreter-se e mostrar toda candura, meiguice e ternura que o convívio com a sua espécie sempre lhe negou revelar: Dr. Waldemar Pires, figura querida que fez história na medicina sertaneja e príncipe encantado da, naqueles momentos, doce e melosa Toinha. O fato de Dr. Waldemar ser casado não afetava em nada sua fantasia. Na paixão se espere o fraco fortalecer-se,  o bruto enternecer-se, o medroso encorajar-se, o grosseiro virar poeta, tudo: menos o bom senso.

Ainda era recente a morte do Major Galdino Pires, pai do Dr. Waldemar, quando Toinha, entrando na casa de Dona Erotildes em direção ao quarto em que morava, ouviu, do teto da garagem vizinha que apoiava-se no muro que dividia os terrenos, uma voz grave e cavernosa que a chamava. Não deu muita atenção e foi passando mas, diante da insistência do chamado e pensando  ser  coisa do outro mundo, requereu (termo que no sertão nordestino designa o ato de contestar ou atender a um chamado de um fantasma.) aquela alma com o clássico: “Quem pode mais do que Deus?”, ao que a pretensa alma, que não era ninguém mais que o filho do vizinho, logo identificou-se como sendo o Major Galdino.

Que felicidade! Falar com o Major Galdino? Aquilo era uma prova de que o Major, lá do céu, aprovava o romance. Teria de cumprir fielmente a todas as solicitações daquele espírito, não podia nem pensar em deixar o Major penando no purgatório por não ter um pedido atendido. E atendeu aos mais estranhos pedidos, até o de rezar plantando bananeira. E agora?, pensou, não usava calcinha. Não havia de ser nada! o Major já era do outro mundo, não iria olhar para aquilo e, tentando manter-se na posição, só conseguiu mostrar sua penugem pubiana já branca, quase fazendo a falsa alma trair-se com uma risada.

A uma súplica, mesmo considerando vir de um ser sobrenatural, não conseguiu atender. Foi quando a voz, mudando o timbre para um tom maroto, identificou-se como Zé Pelintra e pediu para que ela rezasse noventa e nove vezes a Ave Maria.

Foi quando a cidade, à partir da vizinhança, conheceu a expressão:

– Alma tarada sem vergonha!

VALIOMAR ROLIM, MÉDICO E EMPRESÁRIO

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