Uma história de ninar

As notícias da guerra chegam pelas múltiplas ferramentas de informação que a parafernália tecnológica pós moderna expõe e permite.

E a cada noticiário exibido, a cada imagem exposta, a cada escombro esfumaçado, a cada corpo exposto na decomposição pública, a versão da guerra chega com a sempre velha e presente versão dicotômica. De um lado, os bonzinhos, salvadores da humanidade, levando suas bombas, canhões, tanques, bandeiras de “paz e liberdade”, desfraldadas sobre ruínas de vidas, sonhos, edifícios, pessoas resumidas a farrapos esqueléticos sepultos em valas comuns. Do outro lado, os vilões e suas ensandecidas vontades de destruir, soterrar, asfixiar a liberdade humana, marchando como bestas raivosas que, despidas dos mínimos vestígios de humanidade, se lançam, de maneira brutal, sobre pessoas, casas, campos, templos, pisando em pulsares e gritos, sufocando ínfimos desejos de harmonia da convivência.

E nessa polaridade da cobertura midiática, imagens e concepções são forjadas, heróis são ungidos e celebrados nos panteões, vilões são pincelados com os matizes da crueldade, da frieza, da insensibilidade. Vítimas são fabricadas. Corpos são expostos na degradação de escombros.

E as notícias da guerra evocam a nada inocente historinha infantil do Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau.

Qual o habitat natural do lobo? A floresta. A vovozinha e sua bucólica casa representam tão somente a invasão do espaço de vida e sobrevivência do lobo. As tentativas de atacar a serelepe Chapeuzinho Vermelho são estratégias de sobrevivência. Ora, a casa da vovó, a alteração do equilíbrio natural da floresta, com a presença humana e sua histórica capacidade de se apropriar, muitas vezes, depredando, os espaços e lugares, afetam o ritmo de vida do lobo. Ele se vê, de repente, sem o alimento, que migrou para lugares mais saudáveis, sem a árvore que lhe fornece abrigo e proteção, sem o riacho que lhe sacia a sede. Todos, ou foram privatizados pela vovozinha, com suas cercas, muralhas, paredes, ou foram destruídos ou expulsos.

Atacar Chapeuzinho Vermelho e sua cesta de quitutes e doces pode representar, para o lobo, tão somente, uma reação desesperada para sobreviver e, como tantos, não ter que minguar até a morte, ou migrar para cantos outros onde, como estrangeiro, será tratado como invasor. A doce vovó e sua altiva netinha são as personificações da bondade, da sensibilidade, do correto, do verdadeiro. O lobo, se esgueirando por entre troncos e sombras, é desenhado como o covarde, o que utiliza dos mais ardis artefatos e das mais sórdidas estratégias, para eliminar a inocente criança e sua apetitosa cesta de guloseimas.

E, orientados pelos informativos dominantes, vamos construindo a guerra nessa dualidade de versões: o monstro que, brutalizado, ameaça devorar os anjinhos dóceis e suaves, mas que escondem, sob os cotocos de asas, um arsenal de bombas, maldades, mortes, e os heróis e suas sagas homéricas para defender a liberdade, esse “troço” que todos falam e defendem, mas que, como experimentada na prática, poucos usufruem.

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