O poliglota

VALIOMAR ROLIM

Era um dia de verão. Com a proximidade do meio dia, o calor do sertão nordestino mostrava toda sua potência nos meses chamados “bêerreobrós”*. A cidade reportava aquele calor com toda eloquência que seus tons pastéis podiam exprimir. Eram as paisagens com visões desfocadas, a poeira levantada por aquele vento quente que melhor seria chamado de “bafo”, os pequenos redemoinhos transportando vegetais rasteiros, as ruas desertas esperavam pela noite quando, para aguardar o velho aracati**, todas as famílias sentam-se nas calçadas.

A fauna humana era vista à parte. Nas sombras das árvores, nos alpendres, dentro de casa, nos bares, tudo naquela modorra, naquele marasmo, aquela fenomenal mistura latina, aqueles tipos com traços índios, aqueles fortes exemplares negros, tudo tão harmoniosamente misturado e comungado que parecia (e era) uma só raça. Chamava a atenção um espécime alto e louro, de pele branquíssima e olhos claros. Era o Berto, o americano da cooperativa de eletrificação, que já se tornara parte da paisagem. Amigo de todos e tomador de cachaça que, quando queria começar ou parar uma farra, sempre se baseava no horário em que deveria estar na “cohaperrathiva” com aquele sotaque que, nele, todos já estavam acostumados.

A sacrossanta rotina da cidade foi rompida com o barulho de um motor que rateava. Chamou a atenção de todos aquela zoada que, viu-se logo, era de um avião. Decidiu-se na praça de táxi quem era a vez de fazer a corrida até o campo de pouso e tudo voltou à santa paz. No campo de pouso, com o pomposo nome de Aeroporto Antônio Pão Doce, o taxista defrontou-se com um teco teco, já em terra, e um piloto estrangeiro que não sabia falar uma só palavra do nosso pátrio idioma.

Debalde as tentativas do taxista par entender-se com o gringo. Por mais que tentasse, mais difícil ficava. O calor, associado ao exercício de se tentar fazer entender, deixava o estrangeiro mais vermelho ainda e aquele quadro ia ficando mais complicado com achegada de outros taxistas que, com a demora do primeiro, vieram saber o que estrava acontecendo.

A notícia espalhou-se e, dessa vez, tirou a cidade do marasmo. Todos queriam saber o que acontecera no campo de pouso. É verdade que baixou um avião cujo piloto tem uma fala que ninguém entende? Só indo lá para ver. Abandonou-se tudo que se fazia. Refeições foram deixadas à mesa, bodegas foram deixadas abertas, barbeiros barbeiros largaram clientes ainda com o rosto coberto de espuma, os meninos, os curiosos, os desocupados e até os diferenciados, todos foram à pista de pouso participar daquele acontecimento inusitado.

Dono de um mercadinho, membro de clube de serviço e da diretoria dos clubes sociais locais, sentiu-se na obrigação de fazer-se presente ao local para, em nome da cidade, prestar a devida assistência àquele forasteiro. De que tipo de fama para a cidade seria portador o visitante? O que iria se pensar da cidade na distante terra a que certamente aquele gringo voltaria? Não deixaria o pobre piloto à mercê daquela gente sem educação, daquela frasqueira, iria representar o lado sadio da cidade.

No campo de pouso confirmaram-se todas as previsões sombrias do agora representante salutar da comunidade. O estrangeiro, vermelho como uma tocha, estava cercado por uma súcia de moleques, choferes de praça, mundanas e desocupados em geral. A nata do lixo estava ali representada. Cada movimento ou som emitido por ele era ecoado pela turba. Era de se fazer pena.

De pronto, tomou o controle da situação. Usou do respeito que sua posição social lhe conferia e chamou todos às falas. Pediu que abrissem espaço para o visitante respirar e exigiu silêncio pois iria conversar com ele. O populacho atendeu, fez a famosa rodinha em torno deles e um silêncio que, de tão rigoroso, feriu os ouvidos dos presentes. O representante da banda sadia da sociedade, com um sotaque que faria inveja ao americano Berto, disparou:

– Cohaperre comigo, vhocê phala poarthugüês?


* Diz-se, no interior do Nordeste brasileiro, dos meses terminados em “bro”, ou seja: de Setembro a Dezembro.

**Vento que passa à noite no sertão nordestino que vem do delta do Rio Jaguaribe em Aracati-CE.

VALIOMAR ROLIM, DO LIVRO ‘O CRONISTA DO BOATO’

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