Vamos tirar a roupa

Vamos ficar de frente. Os olhos servirão de começo. Vamos retirar a tanga, a venda na testa, as impurezas dos cílios. Que sejam verdes, azuis, castanhos ou negros. Que estejam vermelhos ou úmidos, irritados ou distantes. Vamos arrancar os vestidos, abrir as janelas, olhar sem as respostas habituais.

Vamos ao cérebro. O gorro de indecisão deve ser destruído, assim como as culpas, as idéias pequenas e a impaciência. É do gorro que se proliferam as injustiças, a arquitetura da malvadeza, o desejo de matar. E para os gorros de lã, a facilidade de desnudar o cérebro puxando apenas um fio.

Ainda de frente, vamos para o nariz. Dele, está a terminação opulenta de uma máscara que impede os cheiros. Vamos tirar a roupa para os cheiros, para os puros, os agradáveis, os adocicados, os exuberantes e para todos os seus contrários.

Vamos, de perfil, continuar tirando a roupa. Agora, dos ouvidos. Que sejam enviados à fogueira os tampões, as bolinhas de algodão, as protetoras para a natação, as espécies famosas de mercador. Que entre apenas, através da nudez do pavilhão auricular, o necessário das canções, da verdade, da consciência, da voz divina. Mas vamos ficar atentos ao tumulto, ao tiroteio, à tempestade, à crítica. Que a cera seja retirada e que nada seja transportado de um ouvido para o outro: vamos manter a autonomia na audição.

Vamos tirar as calças da boca. Que isso aconteça delicada ou abruptamente, não importa. Que os lábios fiquem pelados, prontos para falar, gritar, dialogar, beijar, soprar, conciliar. Nua, a língua saberá o momento. Que o esparadrapo da omissão seja triturado, que o sabugo de milho também saia dos inertes ou dos manipulados, que não seja mencionada aquela metáfora sem graça do siri. Que os fantoches assumam suas bocas nuas, num estado de graça e certeza. Que as vestes jogadas sirvam de assombro para as bocas costuradas.

Vamos para o peito. Vamos tirar a roupa do peito. Que ele fique nu, com ou sem pelo, ao Sol, disposto ao trabalho, à luta que amanhece. E que ele, masculino ou feminino, amamente, pelo menos, os medrosos.

Vamos tirar a roupa do ventre. Que ele esteja revirado, sempre com uma criança ali, para ser gerada, para ser alimentada, para ser nascida. Vamos abrigar, todas as horas do dia, um senso de maternidade, um espírito de cuidado, essa coisa linda e gigantesca de amar.

Vamos arrancar as luvas. Que as mãos fiquem nuas para o aceno, para o companheiro, para o suor. Com as luvas, tanto as de boxe, quanto as de pelica, que sejam queimadas as correntes. Mãos nuas e inteiras para a liberdade, pois estar nu é estar inteiro e livre.

Vamos tirar as roupas dos pés: os chinelos da fraqueza, as sandálias do ócio, os sapatos da ignorância, as botas da crueldade, os mocassins da luxúria, os tamancos da avareza. Pés descalços, para que caminhem no deserto, no espinho, na água, na realidade. A nudez é o retrato de si mesmo: no banheiro se entrega e se pacifica, na pobreza se degenera, na sexualidade se confirma.

Vamos tirar a roupa, a roupa mesmo. Que sejamos desenhados nus, sem as folhinhas da parreira. Que sejamos capazes de aceitar a reprodução, a vitória da espécie humana, o prazer perpetuado ou a esterilidade.

As roupas inúteis da discórdia devem ser jogadas, claro, à inutilidade. Vamos tirar as que semeiam o desrespeito, mesmo as que estejam disfarçadas de tubinho, paletó, capa, blusa, saia, short ou manto. Vamos jogar fora todos os arcaísmos do corpo: a samba-canção, o tomara-que-caia, a anágua, o véu, a gravata.

Vamos saquear as lojas, as boutiques, os brechós, e todo o comércio especializado em roupas de apatia e fingimento. Após o saque, vamos partir para a destituição dos sacoleiros, dos comerciantes, dos atravessadores, dos representantes, dos investidores e dos produtores. Que toda a indústria da moda da mesquinharia seja sabotada: os desfiles, os modelos, os designers, os estilistas, os costureiros, os maquiadores e os cabeleireiros. Que toda a publicidade seja cancelada.

É hora de deixar a alma nua, para a limpeza. E vamos tirar tudo, antes que a força da camisa nos condene à clínica da loucura.

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