Tragédias anunciadas

Qual relação entre as fortes chuvas que levaram destruição e morte ao litoral paulista e o terremoto que devastou regiões inteiras na Síria e na Turquia, soterrando vidas, silenciando histórias, anulando experiências e trançados de existências?

Aparentemente, nenhuma relação. Ou, se formos mais meticulosos, apenas que os dois episódios são meras expressões e manifestações da natureza.

Mas, temporais e terremotos sempre aconteceram e registros de suas ocorrências estão presentes nas primeiras anotações deixadas por antepassados em pedras, cavernas, pinturas.

O que dá ligação aos dois acontecimentos e os torna dramáticos é a conversão do natural em cultural. Ou seja, temporais e terremotos trazendo em seus desdobramentos formas e modalidades como homens, em suas relações sociais, econômicas, políticas, vão ocupando espaços geográficos, vão desenhando linhas e contornos, vão rabiscando traçados e erguendo invasões sobre encostas, córregos, vales, florestas.

Riscados e contornos que definem territórios separados por guerras e beligerâncias, isolando em campos e abrigos refugiados e expatriados. Homens, mulheres, crianças, idosos que se amontoam em barracas e abrigos improvisados em lona e estacas de ferro, tendo como fundo musical o espocar de bombas, foguetes e mísseis, enquanto líderes discutem a paz em auditórios e plenários rigorosamente protegidos de armas e catástrofes naturais.

As chuvas que, em grande intensidade, destroem comunidades inteiras, soterradas em um mar de lama e descaso, não são extraordinárias. Temporais sempre aconteceram. O que dá a dimensão da tragédia é a associação de dois elementos explosivos: a ocupação irregular de espaços inadequados para a moradia e a omissão e conivência de gestores públicos com essa prática.

Essa ocupação, entretanto, não dar-se por livre opção, mas por absoluta necessidade. Necessidade daqueles que, expulsos de seus locais originários de moradia, seja pela especulação imobiliária, seja pela expansão das atividades mercantis no campo, que converte morador em trabalhador assalariado, encontram nesses espaços a derradeira alternativa de lugar para viver. Assim, para esses, o que resta como opção são encostas de morros, beiras de riachos e córregos, pântanos e lodaçais.

Tudo, como a conivência de poderes públicos que, omissos, não planejam a ocupação dos espaços e, conivente, não atua na execução de políticas públicas de moradia, de segurança habitacional.

E as tragédias se repetem trazendo na relação de vítimas milhares de pessoas comuns que apenas dão robustez as frias estatísticas. E os homens de bem se reúnem em fóruns e convenções aguardando a próxima tragédia, que já se anuncia.

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