O gavião e o bem-te-vi

Da varanda do meu apartamento no Recife acompanho a construção do ninho de bem-te-vis, nos galhos mais altos de um jambeiro, pouco abaixo do 9º andar, onde moro. Portanto, olho o ninho de cima para baixo e sigo voo a voo, graveto a graveto a edificação do aconchego de reprodução da espécie. Situação distinta da que observo, em Cajazeiras, no gigantesco pé de tamarindo, ao lado da casa do meu irmão Tantino Cartaxo. Lá, o canto, os gorjeios me chegam das alturas da secular tamarineira, no balanço da sua verde folhagem e da ácida fruta. É outra paisagem, outro clima, outra árvore. São outros casais de pássaros, que o bem-te-vi não é ave de tradição migratória.

Apesar disso, eles, os bem-te-vis de lá e de cá, têm a mesma índole, a valentia, as ousadas técnicas de defesa, usando a tática de agredir os que lhes ameaçam. Ainda hoje, presenciei da varanda – privilegiado posto de observação – a aproximação de um gavião. (Não pense a leitora que esse predador é ave rara no Recife. Não é, sempre vejo seu esvoaçar entre prédios e até já surpreendi um gavião comendo a carne que descongelava na área de serviço do vizinho…). Hoje pela manhã, lá estava um gavião pousado no muro do edifício em frente ao meu, à sombra do pé de jambo, exatamente, onde se acha o ninho do bem-te-vi. É claro que só tive olhos para acompanhar os movimentos do valentão. Não esperei muito. O voo seguinte do malvado foi rumo à grade do terraço de um apartamento, tentando chegar mais perto do ninho. Mal o gavião abriu as asas para novo deslocamento, eu vi chegar o bem-te-vi feito uma bala. E já veio afiado, bicando o dorso do gavião que, de asas abertas, voou apressado em ziguezague, sem rumo e, pior para ele, atraindo a presença de mais dois bem-te-vis, saídos de repente não sei de onde. Aí foi mais fácil ainda, botaram o gavião para correr, na repetição de espetáculo já visto aqui em outras situações. E, obviamente, muitas vezes em Cajazeiras e no sertão.

Foi um gavião, como poderia ser o primo carcará, aquele bicho malvado que avoa que nem avião, que come cobra queimada, que pega, mata e come sua presa indefesa, nas paragens sertanejas, como o maranhense João do Vale muito bem captou em sua veia artística. E transformou no sucesso de canto e poesia que encantou a esquerda festiva no tempo da ditadura, o “Carcará” feito hino de luta dos contestadores do regime político de exceção. A baiana Maria Betânia, mais do que a carioca Nara Leão, soube dar sentido de guerra àquela música, com sua interpretação firme e altiva, ela, tão pequena, magra e frágil, mais próxima da aparência de um bem-te-vi do que do temível carcará, devorador de cobras e borregos que nascem na baixada… Ah, as aparências! Como enganam!

Entre os homens, há muitos gaviões.

Fortes, ameaçadores, aproveitam-se das fragilidades alheias, das dificuldades dos pequenos, e também de grandes, em se defenderem de suas garras afiadas, usadas para sobreviver às custas de vidas alheias. Ao longo da história da humanidade, às vezes, historiadores e estudiosos têm os sentidos voltados para os gaviões, que avoam como avião, gigantes, poderosos, singrando nas alturas, a observar lá embaixo potenciais vítimas. Mas é bom olhar com atenção os bem-te-vis humanos, parecidos com os que surpreendi, hoje pela manhã, tangendo para bem longe o ameaçador gavião no coração do bairro de Casa Forte.

P S – Senador Delcídio Amaral, preso. Quem diria, hein?

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