Num sábado de aleluia

Hoje pensei em escrever sobre corrupção. De novo. Falar de grandes empresários na cadeia, em particular, do drama de ficarem de cócoras na sentina, aquele buraco no chão da cela. Que horror! Falaria também do conluio entre fazendários, advogados e banqueiros, a inventar mutreta visando reduzir ou dispensar dívidas milionárias de impostos federais. E depois dividir entre eles e com membros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, onde raposas cuidam do galinheiro. Grana grossa, maior do que o petrolão. Dizem. Só na residência de um esperto, a Polícia Federal apreendeu 800.000 reais em dinheiro vivo! Não, não vou tocar nessas malandragens. Amiga minha, muito católica, me pediu.

– Respeite a Semana Santa, Frassales, deixe isso pra depois.

Pronto. Cumpro a promessa. Que se enlameiem nas fraldas do poder na ganância de riqueza, pelo vício de roubar. São corruptos enquistados em todos os poderes, onde se aboletam de terno e gravata para encobrir seus malfeitos. Uns já provam a sentina da prisão, de cócoras. Em atenção ao compromisso assumido, portanto, hoje falo de amenidades. E, sem muito esforço, retiro da memória lembranças de menino, em reverência ao sacrifício extremo do filho de Maria e José para nos salvar do pecado original. Muitas são as recordações. Diluídas pelo tempo, é verdade, mas de duas coisas eu lembro bem.

A primeira é a imagem do Açude Grande com água a lamber a fita do sangradouro, um monte de gente no aguardo do início da sangria. No cenário não existe canal nem ponte nem meio fio ou calçamento na parede do açude. Só terra batida e capim de burro. A torcida era, porém, a mesma do tempo presente. Na minha cabeça, isso acontecia no sábado de aleluia. Sempre. Durante todos esses anos, e são muitos, (eu nasci no tempo dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial), não posso imaginar o Açude Grande sangrando antes ou depois da Semana Santa. Sempre no sábado de aleluia. Sei que não é assim. Mas a memória infante insiste. Era. Sangrava no sábado.

A outra cena de que lembro se passa também no sábado de aleluia. Memória auditiva e visual. Um homem de cócoras no balde do açude tirava e botava o chapéu de palha, baforava o cigarro, cuspia na terra úmida, mexia as mãos trêmulas, pigarreava, tragava fundo o mata-rato e falava como quem pensa alto:

– Se o padre não achar a gota de sangue no livro, o mundo se acaba. É hoje. Bem que a mulher falou, e o sino não toca… Que diacho, é hoje…

Cheguei mais perto daquele senhor.

– O sol a pino e o padre nada, valha Senhor meu Deus! É hoje, é hoje. O mundo já tá ficando escuro e o sino…

Ele me explicou: quando o padre acha a gota de sangue de Cristo no livro sagrado, manda o sacristão tocar o sino. Aí, pronto, tudo vira alegria. A revelação me assustou. Não havia dúvida, o mundo vai se acabar, pensei. Eu não queria morrer. Uma vida pela frente, os sonhos de criança já tomando corpo. Não, não podia morrer. E minha mãe? Nem pensar. Bonita, esbelta, inteligente. Jamais. Corri pra casa, o coração mais disparado do que as pernas. Mal pude explicar. Ilina me salvou. Tolice, Frassales, isso é besteira, disse minha irmã, morrendo de rir. De mim. E daquele homem de chapéu de palha, de cócoras no balde do Açude Grande, num sábado de aleluia.

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