Mucurana

LUIZ BARRETO

Como era desbotada a origem de Mucurana.

O nome não se sabia. Pais, muito pior. De onde veio, só se tinha dúvidas… Diziam que era das Guaribas, outros, do sítio Olho D’água ou ainda do Cipó dos Moreiras.

Pouco importa. Mucurana era assim mesmo. E o nome que portava, fomos nós que o colocamos.

Mucurana vivia ao léu. Passava a maior parte do tempo sentada na calçada da casa do Dr. Juca Peba, onde também dormia. Sentada na beira da calçada, com as vestes sujas e esmolambadas, passava o tempo a catar piolhos nas suas roupas e na cabeça, com aquelas unhas grandes e emporcalhadas.

Nas horas das refeições, entrava em qualquer das casas da vizinhança e pedia comida, para sua alimentação. Às vezes, e eram muitas, destravava a tramela do portão do Palácio do Bispo e lá conseguia também o seu alimento.

Quando a meninada vinha do colégio e passava pela doida, gritava o seu nome: Mucuranaaaaa..! O nome feio corria frouxo. Ela não gostava de ser chamada de Mucurana. Mas também, ninguém sabia o seu nome. Mucurana, tinha como origem os seus piolhos, que ela curtia, tirando-os e matando-os à unha. Podia-se até ouvir o estalo da morte. O esmagar do bicho, entre as unhas. Era chegar sorrateiro e por-se a escutar. Quase ninguém se aventurava em deleitar-se com essa nojeira.

Pobre Mucurana! Magra. Feia. Doida. Sem casa ou parente, passava a vida calada. Aluada. E nós e a criançada a tomar-lhe de desfeita, chamando-a de Mucurana e doida. Só assim ela falava. Fora disso, a solidão. Assim passava a sua vida…

Mais taludo e tendo terminado o curso ginasial, fui estudar em Fortaleza.

Um dia, lendo uma carta que chegara de casa, recebi a notícia de minha mãe, dizendo que Mucurana havia morrido. Ela era muito considerada pelas famílias do seu relacionamento de pedinte e esmoler – aqui esmoler, no sentido correto de quem dá esmolas. Vejam, logo fui comunicado de sua morte. De que morreu, nada referia. Apenas que foi encontrada morta na calçada. Anoiteceu viva e “acordou” morta. A caridade providenciou o enterro. Dito melhor, a confraria dos Vicentinos providenciou seu sepultamento. A sua última morada fora garantida. Estava eu, pela carta, informado do seu passamento.

Concluído o ano letivo, voltei de férias para minha casa. Quase dois dias de viagem entre Fortaleza e Cajazeiras. Saía-se de Fortaleza na “Sopa” pela manhã cedo, pernoitando-se na cidade do Icó. No dia seguinte, às cinco da manhã, logo cerdo acordado para completar a viagem. Lá pelas 10 horas, se nada anormal acontecesse, chegava-se à Cajazeiras. A parada do ônibus era em frente a cadeia pública. Não sei porque dizer pública, pois não existe cadeia privada, a não ser como uma contravenção à lei. De lá cada um seguia o seu destino. E eu segui o meu caminho com a mala na mão, pois achava que não devia gastar dinheiro com “chapeado” – nome que era dado aos homens que transportavam na cabeça as bagagens dos viajantes. Creio que o nome chapeado, era devido a que cada um desses trabalhadores tinham um chapéu específico, adaptado a profissão e sendo cadastrado na Prefeitura, no chapéu portava uma placa de metal com uma incrustação de números. 89 era um famoso chapeado de Cajazeiras.

De mala em punho dirigi-me a minha casa. Teria obrigatoriamente de passar pela calçada da casa do Dr. Juca Peba, que ficava olhando para a Igreja de Nossa Senhora da Piedade. Aí passando, bem próximo ao local em que ficava Mucurana, lembrei dela, que já havia falecido há uns quatro meses. Arrepiei-me ao pensar nela. Segui o meu caminho.

Cheguei em casa e foi uma festa. Todos queriam saber de tudo. Conversamos bastante, e no meio dessa conversa, lembrei de Mucurana. E quase sem sentir, disse: “Encontrei Mucurana sentada na calçada de Dr. Peba, do mesmo jeito de sempre.” Ia acrescentar, tirando piolho. Mas não pude terminar a frase. O espanto estava mostrado na face de todos os ouvintes. Em uma só voz, disseram-me: “Mucurana já morreu! Como é que você viu Mucurana!?” Percebi, que sem arquitetar, armara uma estória de fantasma. E aproveitei. Minha mãe se esquecera que tinha me dado a notícia por carta. Eu sustentava que vira Mucurana. A notícia se espalhou e todos queriam saber como eu tinha visto a alma de Mucurana. A esta altura eu já tinha inventado mais alguns detalhes da aparição e até uma luz na cabeça de Mucurana já fazia parte da estória. Nunca desmenti esta invenção, e, ainda há, os que se lembram de que vi a doida depois de sua morte.

Minha estória poderia não ter servido para nada, mas Mucurana naquela semana teve duas missas em sua homenagem. O difícil foi o anúncio da intenção das missas, a ser proclamado pelo padre celebrante. Para não dizer o seu apelido, o padre chamou a doida Mucurana de alma desconhecida.

LUIZ BARRETOÉ MÉDICO E ESCRITOR

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