Minha Fé

Contarei uma história que por muito tempo guardei na minha intimidade, que por muito tempo foi peso em meu caminho e destronou a minha fé.

Muitos acreditam que médicos vivem sob o signo do concreto e envolto em materialismo, mas na verdade apesar do alto índice de suicídio na nossa classe e em muitas das vezes por frustrações, na sua maioria leva consigo o sagrado dever de crença em algo maior que nos fortifica, e, que nos permite aceitarem muitas das cruzes que passam pelo nosso caminho.

Eu tenho fé, porém esta não é tão grande como a de muitos amigos evangélicos ou católicos; a minha fé aumentou no misto de alegria e dor.

Em 1983, após visitar um amigo, cuja esposa tinha tido uma criança portadora da Síndrome de Down, eu disse para a minha mulher uma das coisas mais aberrante da minha vida: se fosse meu filho não sairia do berçário. Naquele momento a minha alma estava longe do caminho de Deus, era eu um pobre e desprezível pecador não merecia as chuvas de bênçãos e sim provações próprias da minha afirmação maluca.

Em 1985, a minha mulher engravidou e por cinco meses perdia um pouco de sangue, em muita das vezes partíamos para o hospital na certeza de uma curetagem, porém, sempre havia uma ultrassonografia prévia e lá estava um coração pulsante.

Ao término do nono mês preparei a minha máquina para filmar o filho esperado visto que os dois primeiros eram meninas.

Durante o parto quando a cabeça do jovem ansiosamente esperado saiu do canal vaginal, através do orifício da máquina pude confirmar pela fácies que eram um portador da Síndrome de Down, então lembrei que alguém havia escrito as minhas palavras há dois anos.

A sua imagem inicial, rachou o meu solo, escureceu o meu dia e transformou a minha noite em pesadelo, quis fugir buscar razões que não encontraria e sem motivo para odiar, eu o odiei.

Durante todo dia no hospital passei arquitetando uma maneira de trocar meu filho por outro visto contarmos com oito gestantes, e, por incrível que pareça nasceram oito meninas.

Neste momento eu acreditava que havia rompido com minha fé e ela mais uma vez tinha que ser provada.

Estas provações estavam estampadas nas minhas lágrimas de ódio e desaprovação ao veredicto de Deus deformava e destorcia o meu eu.

Durante um ano coloquei o zero a esquerda do meu filho e passei a desconhecê-lo esperando, que alguma patologia inerente ao seu caso viesse a levá-lo.

Ao completar um ano minha mulher pediu que eu viesse mais cedo para que pudéssemos juntos apagar sua primeira velinha.

Havia dentro de mim uma força que tentava vencer a minha indecisão de voltar para casa com a finalidade de participar deste aniversário, mesmo contrariado ouvia como que vozes que estimulavam meu retorno.

Acredito ter chegado a hora de tentar passar a limpo tanto ódio, tanto desejo de vê-lo partir, mas Deus na sua sabedoria tinha planejado o meu destino e entregou-me algo que por ignorância desprezava .

Ao chegar à casa contrariado, resolvi passar pelo quarto do jovem que durante todo este ano tornou-me escravo da descrença, ele estava de brusco e acordado ao me ver levantou sua cabeça e disse: papá.

Naquele momento senti que todo meu sofrimento tinha terminado que meu orgulho caia por terra e que eu nascia de novo.

Então eu disse: senhor, eu sei que tu me sondas, sabe que também me conheces se ando ou sento, tu conheces meus pensamentos, sabes os meus passos e ainda que haja em mim palavras, sei que em tudo me conheces.

Vi que este filho que agora eu recebia de coração era o maior sinônimo vivo de fé que eu recusava e desconhecia.

Sei, meu filho, que serás o meu companheiro de velhice, faço questão de mostrar-te em todos os lugares enquanto muitos escondem os seus.

Sei, meu filho, e com mais profundo respeito te peço perdão, pois muitos perdem os seus em plena juventude, muitos perdem os seus para as drogas e muitos perdem os seus por doenças sei que o que fiz não é digno de perdão, sei que o que fiz foi por ignorância, por cegueira e por não saber interpretar os designo de Deus. Passei a batalhar pela fé, passei a lutar pela fé, busco a cada momento aumentar a minha fé, porém mais uma vez respondo: eu tenho uma Fezinha.

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