Doutor nordestino comia gilete?

Magro, baixinho, meio amarelado, ele nasceu em pequena cidade do Rio Grande do Norte. Meu amigo veio estudar no Recife já sabendo inglês, que aprendeu sozinho quando residia em Mossoró. Virou professor com graduação e mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco. Depois se fez doutor na Universidade Estadual de Campinas-Unicamp. Enveredou, também, pela área de consultoria econômica e planejamento. Educação musical refinada, do popular ao clássico, até passou esse gosto para um filho, que, salvo engano, chegou a formar um conjunto musical. 

Nos demos a conhecer, pessoalmente, na Consultoria e chegamos a trabalhar juntos em alguns projetos. Tempo de muito proveito para mim e de bons papos, inclusive, a respeito de literatura, a que ele se liga, não só em temas de sua especialidade técnica e profissional, por gosta de ler romances. Exímio nas tiradas irônicas, dá gosto conversar com ele, além de termos, ainda por cima, o laço de cumplicidade que une os sertanejos com a maior naturalidade do mundo. Ele adora contar casos vividos em sua trajetória de matuto viajor. E o faz com invejáveis recursos narrativos.  

O repertório é variadíssimo.

Quando fazia o doutoramento na famosa Unicamp, ele provou o azedume do preconceito. Começando a enturmar-se com seus colegas acadêmicos, certa vez, convida para jantar em sua casa um paulistano, com quem descobrira afinidades. Educado, o recebe ao som de música clássica. Conversa vai, conversa vem, um bom vinho para suportar o frio, o quase doutor paulistano desnuda sua ignorância:

– Então você gosta de música clássica! … que coisa inusitada, um nordestino amante da música clássica!

– E ainda por cima magrinho que nem retirante da seca… 

Em cima da bucha ele destilou sarcasmo!

Outra vez, já ambientado em Campinas, tendo como orientador da tese de doutoramento o economista Wilson Cano, eterno e saudoso professor, autor de muitos livros, o meu amigo potiguar se sentia à vontade numa roda de ilustres acadêmicos. Uma espécie de sarau de eminências pardas nos estudos do desenvolvimento econômico do Brasil e da América Latina. Figuras importantes, que nós mortais conhecemos por meio de livros, ensaios, artigos, conferências, debates, entrevistas. Pois bem, lá para as tantas, um desses luminares, bem-falante economista, se vira para o potiguar, magro e baixinho:

– E você, o que veio fazer aqui?

– Comer gilete…        

A gargalhada incomodou a vizinhança!

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