Água na boca

Afastado que estou do dia a dia de Cajazeiras, não posso atestar, com certeza, como anda a religiosidade citadina, mas creio que ela já não seja tão efetiva quanto o era nos idos dos anos 40/50 do século passado. A igreja católica, então, dominava a mente e o coração dos daquela época que, aos domingos e dias santos, afluíam à igreja matriz da Piedade, hoje consagrada a N.S. de Fátima, a fim de assistir à missa que ali se rezava, nesses dias, em três horários: às 5:00, 7:00 e 10:00 h.

A igreja ficava lotada, sobretudo no horário da madrugada, quando se tinha que chegar muito cedo para garantir o lugar. Ainda havia a separação de homens em um lugar e mulheres em outro, estas sempre de véu à cabeça. Era um hábito que, mesmo como tal, parecia-me imposto. O fato é que, os primeiros bancos da igreja eram ocupados pelos homens, mas todos sabiam que, no primeiro lance de bancos, próximo do altar-mor, o primeiro lugar da fila era “privativo”, todos os dias, do ultracatólico Emídio Barbosa, sempre de impecável terno branco, que fazia questão de ocupá-lo em toda e qualquer atividade religiosa, inclusive durante as “bênçãos” que ocorriam sempre às 19:00 h.

Já o seu irmão, Júlio Barbosa, que sempre o acompanhava, fazia questão do primeiro lance, mas não tinha um lugar definido. Ingênua ou intencionalmente, alguns garotos, em alguns raros dias, ensaiavam tomar o “lugar de Seu Júlio”, e o resultado era um entrevero do qual este sempre saía vencedor, mesmo que fosse por obra e graça do celebrante, senão do sacristão João David e, posteriormente, de Zé Sacristão. Lembro-me bem de que, ao recebermos a hóstia consagrada, era o celebrante que a levava-nos à boca, e não, como acontece hoje, cada um a toma nas próprias mãos… Aliás, recordo-me de que elas, as hóstias, eram “processadas” pelas zelosas irmãs Doroteias, do Colégio N.S. de Lourdes, espécie de guardiãs do nosso catolicismo.

Mas, a lembrança que me vem à mente é a da religiosidade dos meus pais que, nos domingos, nos levavam sempre à missa da 5:00 h. Íamos, meio sonolentos, mas com muito prazer, pois o melhor viria depois: voltávamos pela padaria de Seu Zeca e Dona Anita, a fim que apanharmos o pão quentinho que ali se fazia nas madrugadas. Dona Anita era o “carro chefe” da padaria, enquanto seu Zeca era mais afeito à arrumação das gaiolas dos seus canários.

A propósito, as padarias eram raras pela cidade, mas imensa era a freguesia: além da já citada, situada na Rua Padre Manuel Mariano, defronte de onde hoje funcionam os Armazéns Paraíba, havia apenas, ao que me lembro, a de Seu Machado, na Rua Juvêncio Carneiro; a de Seu Raimundo Florêncio, na Rua Padre José Tomaz e, um pouco mais adiante, na mesma rua, já bem perto da Igreja Batista, a de Seu Mascilon.

Hoje, tendo o tempo passado, ou, melhor dizendo, tendo eu passado no tempo, vem-me à memória o sabor diversificado dos pães da época: francês, aguado, carteira, brote, broa, soda, sem mistério, doce, crioulo, recife, seda, rosca… Não há como deixar de lembrar-se do pão doce, o famoso “pão jacaré” de Saora, fabricado artesanalmente, mas que o fornecia, de porta em porta, no início da tarde de todos os dias…

Se essas recordações, sobretudo com relação aos pães, lhe dão “água na boca”, procure ler o livro “O Pão da Memória – Velhos padeiros, lembranças, trabalho e história”, de autoria do seu filho Severino Cabral Filho (Editora Universitária da UFPB, 2004). Talvez assim você, caro leitor, vá entender, porém discordar do que dizia Belchior: “O passado é uma roupa que não nos serve mais”, pois, saiba ele, o compositor cearense, que a mim o passado me serve e muito, desde que é dele que alimento o meu presente, em busca de um futuro que, espero, ainda seja longo.

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