Apenas uma manchete!

O rosto estampado nas páginas de jornal camufla o humano e revela somente a violência que se naturaliza na identidade: ex-presidiária. Uma designação que encerra estigmas, preconceitos. Reinventa formas e maneiras de trato, ou destrato com os afetos, desejos, necessidades, sonhos.

E lá estava o rosto estampado dando forma e substância a manchete: “mulher é morte com vários tiros em plena via pública”. Quem era, apenas um nome: Joelma.

Conheci Joelma no Presídio Feminino de Cajazeiras onde, desde 2013, desenvolvo um projeto de extensão que a pandemia interrompeu em 2020. Por meio das atividades extensionistas o projeto busca criar espaços para a constituição de uma compreensão sobre os direitos humanos das mulheres presidiárias na interface entre direitos humanos, cidadania e relações de gênero, considerando o contexto prisional feminino.

E porque Joelma ganha destaque nestes escritos meus. Tenho profunda dificuldade em memorizar nomes, mas gozo da facilidade de apreender as pessoas em suas ações e gestos. Assim, em vários momentos de atividades realizadas no presídio Joelma estava presente. Mas não apenas presente, participante. Envolvendo-se nas discussões, participando das questões propostas. Instigando outras presas ao envolvimento com o debate. Muitas vezes, em atividades lúdicas, políticas, artísticas ela era uma das principais protagonistas.

Outro registro de Joelma emerge na dimensão da tragédia que caracteriza a vida prisional neste país, sobretudo, nos presídios femininos onde a relação de gênero se escancara e expõe a compreensão de que o crime é masculino. Para as mulheres, o delito é um demérito a sua natural condição de docilidade, fragilidade, amabilidade.

Trazendo como mote a questão da saúde e de como os serviços de saúde imprimem esta configuração de distinção, a atividade anota o relato de Joelma, que, após reiterados apelos, sem escuta, pelo atendimento odontológico para redimir a angustiante dor de dente que a afligia a dias, ela, tendo como ferramenta apenas um rudimentar alicate de unha, extrai o dente a seco. Somente uma hemorragia intensa consegue a atenção para um atendimento médico.

E assim, entre relatos e dramas Joelma, como tantas presidiárias do Presídio Feminino de Cajazeiras e de tantos outros Brasil a fora, segue a maldição socialmente inventada de condenação a invisibilidade, ao ostracismo social, político, cultural, humano. Nada são! Apenas criminosas que macularam as sacrossantas relações sociais e transgrediram a natural determinação do feminino gentil, sereno, submisso.

E Joelma é apenas uma manchete de jornal, sem autonomia, identidade, risos, cores, sonhos.

E importa a vida de quem saiu do calabouço apenas como mais um número estatístico arremessado no mundo sem letras, sem saberes, sem sonhos, alinhavando apenas abortos de viver?

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