A consciência negra de todos nós

Eles chegaram aos milhões. Como animais para o abatedouro vieram amontoados em fétidos e insalubres porões de navios. Saiam de sua África negra arrancados de seu solo, de sua gente e de seus costumes, tradições e modos de vida. Eram apanhados a dente de cachorro pelos traficantes; homens brancos de almas cristãs e que amealharam enormes fortunas que, mais tarde, impulsionaram o desenvolvimento industrial de países como Inglaterra, Holanda, França. Muitos pereceram na longa travessia do Atlântico. Morreram de fome, de epidemias ou mesmo de saudades.

Chegando as terras alvissareiras do Novo Mundo foram comercializados em praças e mercados como mercadorias aquilatadas pela força do porte físico, pela saúde dos dentes, pela pujança dos músculos capazes de movimentar a economia dos ricos engenhos de açúcar. Como escravos foram aprisionados nos pelourinhos a qualquer sinal de insubmissão e rebeldia. Espancados com a crueldade dos capatazes e capitães do mato morriam ou sobreviviam aos maus tratos vegetando nas escuras e desumanas senzalas. Olhos vazados, membros quebrados, senso atribulado pelo sofrimento amenizado pelo entoar dos cantos de saudade e lamento de um continente negro e livre que se esgarçava nas reminiscências de uma terra distante. No sofrimento da escravidão orava aos seus orixás e divindades no silêncio das interdições que a religião católica oficial impunha. Transmigrava divindades para os santos católicos como estratégia para adaptar-se uma realidade de tormentos e martírios.

Muitos séculos se passaram. Abolida oficialmente a escravidão as condições históricas que a produziu sofreram poucas alterações. Hoje, no país, mais da metade da população é negra ou parda, segundo dados do último censo demográfico. Os números revelam ainda que, embora, quantitativamente majoritária, essa população é a que apresenta os maiores índices de analfabetismo, os maiores percentuais de pobres, o maior contingente de miseráveis. Escancarados os portões das senzalas, elas permanecem lacradas nas favelas de tantas cidades brasileiras para onde milhões de negros alforriados pela libertação dos escravos foram empurrados com a importação dos colonos brancos europeus e asiáticos.

A celebração da Semana da Consciência Negra festejada no aniversário de morte de Zumbi dos Palmares escancara como ser negro neste país ainda é um exercício cotidiano de romper os portais das senzalas, escapar ao assédio dos senhores brancos que tentam se apropriar dos corpos negros das infantes escravas, livrar-se dos preconceitos, manifestos e velados, que preconizam como verdade absoluta e universal, a cor da pele negra como condição natural de bandidos, marginais, delinqüentes, estupradores. Os exemplos de superação se avolumam, mas, ao mesmo tempo, colocam como desafio que, o orgulho de ser negro não pode se restringir aos de cor negra ou parda, mas a todos os brasileiros que sonham com um país que, assentado na diversidade, faz desta caleidoscópica mistura o principal ingrediente de sua originalidade e criatividade para superar adversidades e construir sonhos.

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