Recordações da Semana Santa em Cajazeiras

A Semana Santa me traz lembranças da infância em Cajazeiras, associadas, quase sempre, à chuva, ao inverno, à sangria do Açude Grande. Eu pegava peixe com a mão nas locas de pedras que existiam antes do canal. Da calçada da casa onde nasci fisgava com o anzol piaba, corró, piau sabão. Quando vinha na ponta da linha uma traíra ou um piau verdadeiro era a glória! Certa vez, suspendi no ar um cágado, aquela marmota feito um crucificado… que medo! Quando a água baixava, a festa se deslocava para o sítio, como a gente chamava os dois hectares em redor da residência construída por Cristiano Cartaxo nos anos trinta do século XX.

Dessas coisas do passado recordo, também, a espera agoniada, no sábado de aleluia, do toque do sino da matriz. É que, diziam, se o padre não encontrar no missal a gota do sangue de Cristo, o mundo se acaba… Eu acreditava, piamente. E só me acalmava com o toque do sino. Aleluia, aleluia! O mundo não vai se acabar!  Numa Semana Santa dessa época vi meu pai declamar, vezes sem conta, um soneto em francês. De tanto ouvi-lo recitar, até decorei os primeiros versos, eu que tenho péssima memória. Passeando no alpendre, para lá e para cá, meu pai chegava a emocionar-se, imerso na sonoridade do poema, a voz trêmula, inquietas as mãos, o olhar perdido, possivelmente, num recanto qualquer de sua vida. De sua longa vida. Cristiano recitava na língua do autor.

Mon âme a son secret, ma vie a son mystère,
Um amour eternel em um moment conçu;

Desculpe, fiel leitora, não cito para esnobar. Faço-o porque está na memória assim mesmo, em francês. Minhas cordas interiores se inflam ao extrair da alma longínquas imagens e sons tocantes. Aí vai a tradução dos dois versos iniciais e do soneto inteiro.

Tenho n’alma um segredo e um mistério na vida:
Um amor que nasceu, eterno, num momento;
É sem remédio a dor, trago-a pois escondida,
E aquela que a causou nem sabe o meu tormento.

Por ela hei de passar, sombra inapercebida,
Sempre a seu lado, mas num triste isolamento,
E chegarei ao fim da existência esquecida
Sem nada ousar pedir e sem um só lamento.

E ela, que entanto Deus fez terna e complacente,
Há de ir, por seu caminho, alheia e indiferente
Ao murmúrio de amor que sempre a seguirá.

A um austero dever piedosamente presa,
Ela dirá lendo estes versos, com certeza:
“Que mulher será esta” e não compreenderá.

O soneto é de Alexis-Fêlix Anvers. O único que dele se conhece, daí o nome que lhe deram: Soneto de Anvers. Seu autor nasceu em Paris em 1806, onde morreu 44 anos depois. Imortalizou-o este poema, traduzido por muitos escritores do mundo inteiro. A versão, aqui transcrita, é de Guilherme de Almeida. Penso que Cristiano Cartaxo deve ter sua própria tradução. Nunca vi, mas ainda tenho a esperança de encontrá-la entre os papeis velhos que minha irmã Ilina me deixou como herança.

Retiro da memória infante, a expressão visual, emotiva, o tom da oralidade de meu pai ao declamar, a alma revelada aos pedaços, no gesto, no jeito, na sensualidade da voz. Ora exaltado, ora contido, como se os versos fossem de sua lavra. Ou tivesse vivido motivação igual a de Anvers. Às vezes, reduzia o ritmo, concentrava-se, baixava a voz. Um sussurro então brotava quase em câmara lenta, isso, câmara lenta, como a reviver aquele instante de prazer, no gozo da arte de recitar versos carregados de emoção, amor e vida. Nunca de morte.

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