Olhar enviesado sobre a realidade

Semana passada escrevi neste espaço a respeito de Marco Antônio Maciel, um político pernambucano de minha geração, que ocupou posição de destaque ao longo do regime ditatorial e na fase imediata à Constituição de 1988. Fui questionado. Como é que você se ocupa desse personagem, filhote da ditadura, figura perniciosa da política brasileira? Não aceitei a admoestação de leitora de minhas crônicas, muito embora lhe reconheça o direito de me escrachar com base em posição política e ideológica, cristalizada ao longo de muitos anos de militância de esquerda. Não houve argumento capaz de fazê-la enxergar o equilíbrio do meu texto, criado a partir de um fato concreto: o mal de Alzheimer, que tirou do setentão Marco Maciel a possibilidade de escrever suas memórias. Para que memórias dele? Nada a convencia. Para minha interlocutora, o fato de falar dele, constitui em si mesmo um pecado.

Ela só vê um lado da realidade.

Contei-lhe então este episódio real. Quando estava escrevendo o livro Política nos currais, há muitos anos, precisei de dados acerca do movimento popular na Paraíba, sobretudo, da luta de trabalhadores rurais na zona da mata. Luta incentivada pela Igreja Católica, então comandada pelo arcebispo dom José Maria Pires. Era necessário conhecer melhor os conflitos gerados pela ação organizada dos camponeses que, ao reivindicarem terra para trabalhar, entravam em choque com latifundiários, a polícia estadual e políticos do chamado Grupo da Várzea, bloco governista formado no interior da ARENA, o partido que dava sustentação eleitoral à ditadura. Eram conflitos destacados com frequência na imprensa paraibana. Procurei então uma amiga que estava preparando uma dissertação ou um TCC sobre o tema. Ela me cedeu alentada pasta de recortes de jornais. Que surpresa! Só havia recortes de matérias aos trabalhadores e à Igreja!

Dia seguinte, eu lhe perguntei, e a outra pasta?

– Que outra pasta? Só tenho uma. Não tenho outra, só me interessam as notícias favoráveis à luta dos trabalhadores, ela disse, meio encabulada, mas com a convicção – a ideológica convicção de militante -, que olha os fatos, não para conhecer a realidade, mas para enquadrá-los nos seus objetivos.

Devo esclarecer que narrei à minha revoltada leitora com mais detalhes, dando nomes inclusive. Tudo em vão. Alertei para as múltiplas faces dos fatos concretos, do mundo real. Apelei para a história. Na época do stalinismo, apagavam-se dos livros de história fotos dos expurgados pelo regime, pretendendo-se com isso riscar personagens e episódios da memória do povo. Pratica semelhante usava o nazismo e todos os regimes que sufocam as liberdades individuais e políticas, eu completei.

– Como a ditadura que Maciel ajudou a manter, inclusive quando os militares fecharam o Congresso Nacional.

Ela disparou, triunfante, na minha cara, agarrando-se a esse fato, como quem dá um tiro de morte. Muito bem, lhe disse, se você propõe apagar o nome de Maciel da História, corre-se o risco de as gerações futuras não saberem de que forma os aliados, serviçais, oportunistas e companhia deram aparência de normalidade democrática à ditadura, os que foram corresponsáveis pelo desvio na rota constitucional que o Brasil vinha tentando seguir, aos trancos e barrancos, desde a queda de Getúlio Vargas em 1945.

E o papo morreu aí, com resmungos e palavras inaudíveis.

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