O morticínio dos yanomamis

Mortos-vivos, mães magérrimas com peitos murchos sugados na última esperança de vida me acendem na memória cenas e conversas que vi e ouvi há 80 anos. Sou capaz de repetir o apelo musicado: dona me dê um decomezim! A súplica do guri, de minha idade, chegava sempre nesse refrão à hora do almoço. Encostado no portão de madeira, que existia na casa onde nasci em Cajazeiras, o menino tem as costelas expostas. Emagrecera, feito cabrito novo desgarrado, em poucas semanas, na seca de 1942. Antes, ele passava com a mãe, de volta do Açougue, pelo leito do antigo riacho das cajazeiras, as carnes lhe encobrindo os ossos.

Ficou pele e osso.

Rumino a cena, a voz cantante me arrepia a alma. Santo Deus! Vendo os yanomamis que escaparam do genocídio civilizatório (?), choro diante da televisão. Não são lágrimas de novela, regadas a colírio. É pranto convulsivo, incontrolável. Painho, o que é isso, painho, o que foi… a voz filial, por mais carinhosa e verdadeira, não evita a sangria d’alma.

Vozes avoengas se cruzam. Sem esforço as reconheço de pronto. Minha mãe! Minha tia Inácia! Irmã mais velha de dona Isabel, tia Catia me contou inúmeras vezes:

Minha bisavó, Frassales, era índia de verdade, pegada na beira do rio, nua, nuinha em pelo, lá pras bandas do Piauí, do Maranhão… sei lá. Nunca soube direito. Mãe não me disse ao certo. Pode ter sido até nos Inhamuns ou no Cariri, onde a gente nasceu. Naquele tempo era assim, os homens preavam as meninas nos matos para se servirem delas, para cuidarem da casa, dos filhos, do roçado. Era assim. Esses cabelos escorridos, a cor da pele, o jeito desconfiado que a gente tem… vem dela, daquela índia arrastada da beira do rio.

Na minha ruminação adolescente – sem o alumbramento evocado pelo poeta Manuel Bandeira ao ver uma moça nuinha banhar-se no Capibaribe – imaginei minha tataravó, jovem impúbere, nadando em algum afluente do rio Jaguaribe! O que me assaltava naquela ilusória busca de meu passado étnico, emerge agora em meio às imagens televisivas do brutal desprezo à vida.

Imundos!

Vocês são piores do que o capitão-do-mato que preou minha tataravó. Estimularam a grilagem, os crimes sexuais de predadores da selva e garimpos ilegais contaminantes mortíferos da água, de peixes, da natureza, na estúpida ganância do ouro. Agora mudou. A marcha teve início. Exército, Marinha e Aeronáutica entraram na guerra de salvação. Salvação do povo yanomami. Salvação da dignidade nacional.

P S – Esta crônica é dedicada a Gonzaga Rodrigues.

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