Leitura da mão

Há muito tempo não lia um livro volumoso. O que leio agora tem 628 páginas. É um catatau e tanto. Mas se o livro é bom, como é o caso desse, e isso é subjetivo, rapidinho passa o tempo igualzinho quando estamos conectados prazerosamente nas redes sociais. É só aquietar numa rede, num sofá, ou qualquer cantinho aconchegante, e, vapt vupt você acabou de ler.

Me aproximo das 400 páginas. A proporção que chega ao final do volume, você tem que apoiar uma mão sobre a página para facilitar a leitura porque o livro vai envergando. Com isso me dei conta observando o dorso de minha mão e distanciei-me da leitura do livro para ler a epiderme de minha mão. O que tem demais ali? O que me faz contemplá-la? Fiquei vendo manifestações de enrugamento e deduzindo que era consequência natural de nosso relógio biológico. Como o avanço da leitura do livro ao seu fim de quase 700 páginas, nos envergamos, e as rugas nos avisam da aproximação do fim de nossas páginas da vida.

As veias acentuadas em traços, como se fossem rios de água verde oceânica, fizerem arregalar meus olhos como se estivesse dando um close. Com os dedos da outra mão apalpei suavemente aqueles vasos sanguíneos querendo entender os mistérios daquelas guias que conduzem sangue ao nosso coração. Acho que é isso. Se não perdi aquela aula de sexta-feira de biologia no segundo grau no Colégio Estadual de Cajazeiras, que abordava esse conteúdo, é porque eu estava então tomando uma meiota (metade de uma garrafa de cachaça) no Bar de Fuba com meus amigos, irresponsavelmente. Fuba, um grande jogador do Santos de Sérgio Davi, dos áureos tempos do futebol cajazeirense. Isso mesmo, um atleta que tinha um bar! Isso é Cajazeiras, minha gente!

Esqueci a leitura do livro exatamente no momento em que a personagem discorre sobre a influência que os pensadores e escritores da cultura ocidental lhe motivaram mais ainda para o hábito da leitura. E tudo ao alcance de qualquer um. Era só ir a uma biblioteca pública que estava tudo disponível.

Voltei à minha mão e esqueci a influência da cultura ocidental. Olhava admirado para aquele membro de nosso corpo e o que ele seria capaz de produzir. Um murro, para provocar dores. Um carinho, para enternecer semblantes. Um fechar e abrir constante para doar sangue e salvar vidas. Espalmada, um tabefe na cara dos indecentes. Mas nunca esquecendo que a mão é uma simbologia do bem e do mal do homem. Por isso o poeta paraibano Augusto dos Anjos resumiu: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”.

Lembrei do monólogo teatral As Mãos de Eurídice, de Pedro Bloch, encenada pelo ator cajazeirense Sibito, no Círculo Operário, num primeiro de maio. Eu era menino, morava na rua Pedro Américo, rua do Círculo Operário. Sibito deu um show. Fiquei admirado como ele tinha decorado todo aquele texto e se expressando sozinho. Eu nem sabia que existia monólogo teatral.

Larguei o livro de lado, virei a mão e vi a palma de minha mão com seu entrecruzamento de linhas e não quis atribuir significados, reflexões, conjecturas, porque elencar interpretações a cada membro de nosso corpo é não querer entender que nós somos seres complicados, indecifráveis, difíceis. Mas viáveis se quisermos estender as mãos para dialogar. Ou melhor, no atual cenário que vivemos de pandemia e polarizações políticas, comportamentais e que tais, acho que nem isso.

Ah, o corpulento livro que estou quase terminando de ler é A Descoberta da Escrita, do escritor norueguês karl Ove Knausgard.

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