Flores e sementes

A paisagem passa na velocidade do carro que cortar estradas pontilhadas do verde que a abundância das chuvas prorroga além do tempo comum de estiagens e semiaridez.

Na sua imponência de rei do sertão um carcará desenha acrobacias num céu ainda tingido de cinza e chumbo dos derradeiros cordões de chuva que prendem ao longe em serras e vales.

O verde que destoa da caatinga sorumbática agora divide a primazia da cor com o roxo das frondosas moitas de pau d’arco que, reconhecidos em agradecimento a fartura das chuvas, explode em volumosos cachos de flores que, sacudidos pelo vento, espalham pétalas e beleza para além de sua fronteira de galhos. Nem mesmo o barulho do motor do carro consegue abafar o som serelepe de abelhas que fanfaram na fartura de néctar.

As margens da estrada também desenham cenários de touceiras de jitiranas e outras sazonais plantas rasteiras que se espraiam por lajedos e grotas, se enroscam em arame farpado e estacas, e, na composição cromática que as chuvas propiciam, pipocam variedades tantas de flores lilases, vermelhas, rosas, brancas. Todas, na singeleza da rusticidade do sertão, emprestam alegria a uma terra que teima em se afirmar possível.

Na cabeça de uma estaca um gavião peneirador espreita um casal de rolinhas fogo pagou que, na sequencia da ordem natural das coisas, protege e guarda o ninho onde filhotes em penugem rala e inicial asseguram a continuidade da vida.

O badalar de chocalhos acusa o movimento de bois e vacas usufruindo de sombras frondosas de oiticicas e juazeiros no compasso da ruminação do capim que, generoso, cresce onde antes brotavam baraúnas, catingueiras, pau ferros, marmeleiros, imburanas. Bezerros em movimento de crescimento escramuçam em ágeis piruetas sob o atento olhar de mães e curiosos. Um cão late ao longe denunciando a presença humana do vaqueiro que, guiando motocicleta e boné com esfinge de time de futebol, reinventa o hoje da lida que, outrora, trazia as marcas do gibão, perneira, chapéu de couro e cavalo baio.

No oitão de uma casa a cisterna com marcas de anos sangra e injeta alegra aos moradores que terão água para consumo humano no período da estiagem e, assim, verão assegurado o direito humano a água de beber saudável. Mas, muita água de chuva que caiu no sertão, transbordando córregos e riachos, correu para o mar na esteira da interrupção de programas e políticas públicas que, iniciadas e ensaiando os primeiros passos, começaram a ressignificar o viver nesta região sob o mote da convivência com o semiárido.

Milhares de cisternas não mais foram construídas deixando na orfandade da dignidade e da humanidade milhares de pessoas que, submetidos a escassez de água, mata a sede em barreiros salobros, em aguadas poluídas, em cacimbas minguadas.

E, espreitando o espetáculo de cores que as chuvas proporcionam, ganha convicção a certeza de que somente a ação do homem na harmonia com a natureza pode produzir vida e acalantar o prazer de ver o tufo de flor do pau d’arco soçobrar ao vento leste que anuncia a chegada do verão.

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