Delicada, eu?

Na solenidade de posse dos dirigentes de um determinado órgão uma fala se repete, me entranha os ouvidos e arrepia minhas convicções políticas e culturais. Como um dos empossados é mulher, com ênfase se repete que, finalmente, a entidade terá “uma alma feminina”. Será cuidada com “carinho”, “delicadeza” “afeto”.

Falas ditas em tons de casualidade. Palmas e risos de aprovação confirmam com anuências de gestos e movimentos de positividade. E minha inquietação e indignação crescem na mesma proporção dos aplausos. Como a presença feminina é traduzida, como naturalidade, como delicadeza, sensibilidade, feminilidade?  Minha indignação se alimenta nos argumentos da francesa Simone de Boauvoir que, em meados do século passado, já nos lembra que “não nascemos mulher, nos tornamos”.

Para Boauvoir, o tornar-se mulher dar-se no campo da cultura, ou seja, das práticas sociais, e não no código genético. A determinação biológica do masculino e do feminino vai sendo ressignificada por ações, atitudes, comportamentos, leis, espaços, territórios cartografados pelos homens/mulheres em suas vivências. Espaços e fronteiras que delimitam e autorizam acessos e definem interdições e impedimentos.

É também no campo da cultura que se gesta a naturalização e a essencialização dessas diferenças, num movimento de inversão onde o que é criação e/ou invenção humana torna-se natureza. Assim, é inerente a “natureza feminina” (outra fala que me causa náuseas políticas) a delicadeza, o cuidado, a gentileza. 

Discursos que escondem regras da prática discursiva onde o que é dito, nem sempre expressa suas intencionalidades ou escancara suas autorias ou lugares políticos.

Como nos lembra outro filósofo francês, Michel Foucault, os discursos, traduzidos em falas, leis, práticas, comportamentos, concepções, teorias, representam um conjunto de regras que se forjam nas arenas de lutas onde poderes, saberes, dizeres se instituem, são fincados e extirpados no compasso da produção de objetos, coisas, palavras, línguas, imagens, vozes, silêncios.

Assim, o ser mulher é uma invenção da cultura, sendo moldada, talhada, descrita em práticas e códigos religiosos, em trocas e intercâmbios econômicos, em saliências e reentrâncias, em côncavos e convexos, em aproximações e dissidências. Em anuências e consentimentos. Em afetos e violências.

Portanto, como se inventa o feminino na tradução do delicado, do gentil, do cuidado, a reelaboração dessa “essência” dar-se no território das práticas e experiências dos humanos, em suas interrelações cotidianas. Práticas que, nos nossos tempos, podem ser designadas por vivências feministas.

Assim, meu ouvido cultural, social, político, engendrado na experiência feminista entra em ebulição quando as falas repetidas na solenidade de posse reverbera em tímpanos, tons e sons, nem sempre “geniais”.

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