Cristiano, ou apenas o cristão

Quando ele nasceu seus irmãos mais velhos já cumpriam a macabra rotina da fome e da desesperança que, por uma herança histórica de colonização e opressão, legou e continua lançando milhões de famílias brasileiras em um quadro de invisibilidade social e econômica. Famílias que amanhecem com a tristeza de um futuro que não existe e adormecem com a melancolia de um amanhã que nunca chega. São apenas viventes cumprindo sinas determinadas por ordens e elaborações preestabelecidas que segregam os humanos em guetos e subterrâneos que anulam qualquer dignidade e aponta como única possibilidade de vivência a marginalidade e a criminalidade.

Nasceu na singeleza de uma casa rústica, com acanhada e insignificante mobília que se escondia na invisibilidade de paredes de taipas ou de tijolos expostos, iluminadas com pálidas lamparinas de tochas miúdas e esmaecidas. Seus pais, José e Josefa, traziam nos nomes e nos rostos os traços de uma gente simples que, como diz o poeta “ri, quando deve chorar e não vive, apenas aguenta”. A timidez de quem encara a vida sempre com a suspeição de estar desafiando os poderosos, vistos como os que detêm a exclusividade do dom da existência que lhes estende como uma generosa concessão.

A infância teve quase nenhuma educação formal e muita aprendizagem nas tramas e ardis que rabiscam o alfabeto da violência, da ilegalidade e da contravenção como única escrita impossível para quem não via a escola como uma extensão da sua vida e como um espaço para o crescimento pessoal, cultural, político. Ainda criança já se torna aprendiz em pequenos delitos que começam a lhe garantir uma projeção no grupo de amigos e parceiros de vida e de sina. Pequenos delitos que são acompanhados pelos primeiros goles
de aguardente e outras bebidas alcoólicas que, na falsa ilusão de amortecer a dor do
sofrimento diário da existência minguada e tosca, vai produzindo uma maléfica dependência que, nos primeiros anos da juventude, traz a malvada premonição da doença.

Dependente da bebida, semi-analfabeto, magricela pela fome e pela miséria, a vida adulta lhe alcança com a visão de um amanhã totalmente turvado pela incerteza de qualquer possibilidade de dignidade. Os crimes cometidos como alternativa de sobrevivência são julgados pela justiça humana como merecedores dos castigos severos e capazes de ressocializá-lo enquanto um cidadão de bem e com condições de convivência e de observância das regras sociais. Driblando a vigilância da justiça ele se esgueira entre
sombras e franjas da clandestinidade que sempre lhe deu guarida. Mas é encontrado pela vigilância dos homens de bem. As algemas ferem seus frágeis punhos. Os apelos maternos de que o alcoolismo já o tornara um farrapo humano não comovem seus verdugos. Preso, tem seu estado físico agravado e, irresponsavelmente, é libertado e solto pelas ruas de Cajazeiras, sem lenço e sem documento e, desnorteado, passa a perambular pela cidade a ermo, até que a morte o encontra em uma calçada fria e impessoal. Os transeuntes olham com desconfiança e indiferença. Morre como nasceu. Na simplicidade de uma vida de ostracismo e invisibilidade.

E o filho de José e Josefa se chamava Cristiano, ou, o cristão. Apenas, o cristão.

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