A mulher, o filho e o cachorro

Saiu de casa desafogado, enfim, concluíra o romance. Fez a última leitura após a terceira revisão enviada pela exigente Alfaguara. Havia anos, personagens, armas, tiros, vozes o azucrinavam desde a infância, remexiam-se na memória a procura de um fio d’água para chegar ao rio. Foram desaguando em solitárias noites de fortes emoções, às vezes, umedecidas de lágrimas. Naquela manhã de domingo buscava a calma das ruas.

Mal se afasta do prédio, topa com uma mulher, o filho e o cachorro, que traça o roteiro, o faro a guia-los com estratégicas paradas. Ele, o romancista, aproxima sua incontrolável vontade de falar:

– Qual dos dois lhe dá mais trabalho, o menino ou o cachorro?

– O cachorro, claro, respondeu, o olhar sorrindo mais do que os lábios.

Emparelharam. Afaga a criança que segura a cordinha da coleira do bichano. Volta-se para a mãe e deixa escorrer sua curiosidade, ao comentar em jeito de pergunta se hoje era o dia de folga do marido, referindo-se aos cuidados domingueiro com o cãozinho. O silêncio lhe parece estranho.  

O papo continua a fluir com naturalidade.

A participação ativa do garoto de quatro para cinco anos, incansável em correr e parar, parar e correr com seu amiguinho, a calda a demonstrar a alegria da brincadeira. Assuntos triviais do bairro dominam a conversa, a próxima inauguração de novo supermercado, a reconstrução das calçadas pela prefeitura, prévias do carnaval no bairro, a floração do cajueiro. E se falam com furtivos olhares. Velhos amigos? Já caminham mais de cem metros, quando ela rompe o silêncio, à sombra do jambeiro, os olhos postos no filho:

–  O pai virá daqui a pouco… hoje é o dia dele.

Antes da despedida o inevitável afago nos cabelos de Nathan, o carinho escapando das mãos trêmulas do escritor, o olhar da jovem senhora a esbarrar na expressão tímida de um novo amigo, quem sabe. Durou pouco a indecisão. Ao se despedir, ela deixa um apelo em feição de convite, não sem antes revelar, eu sei quem você é. A voz, menos penetrante do que o olhar, anuncia o número do seu apartamento.

– Passe lá mais tarde para um cafezinho.

Quando a porta se abre, a beleza não revelada na rua o recebe, à vista da calda do cachorro em pura festa. Enquanto Rosana cuida de espalhar da cozinha o cheiro do café, ele nota seu último livro na mesinha, o marcador na página da cena em que dois personagens nus dialogam à sombra da árvore do amor.

Tudo flui com naturalidade na calma do bairro na tarde de domingo.  

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