A morte do tenente João Cartaxo (2)

Povoado de Santa Fé. Ainda hoje há quem faça confusão entre Santa Fé e a cidade de Bonito de Santa Fé. Volto ao assunto para atender, também, algumas mensagens de leitores desta série de artigos, pedindo mais informações a respeito daquele minúsculo pedaço do sertão do Piranhas. Santa Fé é hoje um lugarejo meio isolado na serra do Bongá, ao qual se chega a partir da saída de São José de Piranhas rumo a Carrapateira. Fui lá conferir o que restou do famoso povoado. Tive o privilégio da companhia do professor Francisco Pereira, tendo como cicerone Messias Lima, mestre e escritor, que, aliás, já sistematizou em livros dados importantes acerca de Santa Fé e sua história. Na origem, tal como Cajazeiras e São José de Piranhas, Santa Fé pertenceu ao município de Sousa. Já foi distrito de Bonito e hoje integra o município de Monte Horebe.

Desde que se tornou arruado, no século XIX, fez-se passagem e parada de comboios de tropeiros vindos do Pajeú e do vale do Piancó com destino ao Ceará. O clima ameno ajudou a atrair para Santa Fé fazendeiros e comerciantes, um fator de impulso para o povoado, fazendo-o florescente núcleo comercial, a ponto de suplantar, segundo historiadores, o antigo distrito de São José de Piranhas. Entre os homens ricos que foram morar em Santa Fé estava o coronel José Ferreira Guimarães (Cazuza Marinheiro), avô de Otacílio Jurema, de José Rolim Guimarães e bisavô do oftalmologista Sabino Filho. O coronel Guimarães, hoje nome de rua em Cajazeiras, saiu de Santa Fé, fugindo das brigas de família e, sobretudo, da presença de grupos de cangaceiros, a exemplo dos Viriatos, o mais famoso.

Quem eram os Viriatos?  Eram muitos irmãos, segundo Gustavo Barroso, salteadores de estrada e guerreiros. Colocavam em prática os ardis dos ladrões, obrigando os comboieiros a pagar tributos de barreira, pedágio ou passagem. Os Viriatos tinham base em Boa Esperança (atual cidade de Iara) e agiam de preferência na divisa do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, sendo “as comarcas do Icó, Cajazeiras, Sousa e Pau dos Ferros as áreas de operação da horda de facínoras”, segundo Abelardo Montenegro. Eles eram assíduos em Santa Fé. Existem muitas referências aos Viriatos nas disputas, brigas, roubos e outras traquinagens, sem contar a acusação de que uma parte do grupo teria ajudado o alferes João Pires Ferreira a invadir Cajazeiras, no dia da eleição municipal, em 18 de agosto de 1872, quando morreu o tenente João Cartaxo.

Pois bem, as disputas econômicas, a presença dos Viriatos e outros grupos de cangaceiros, acoitados por fazendeiros, transformou Santa Fé num lugar insuportável. Tanto é que dois vigários de lá (os padre Manoel Lins de Albuquerque e padre José Tomaz de Albuquerque) lançaram maldição sobre Santa Fé e foram embora. Junte-se a isso, a grande seca de 1877 e está formado o quadro que levou Santa Fé à completa decadência. Na vila, hoje reconstruída, atuais restam poucos sinais de sua antiga pujança. Um cruzeiro, pedaços de parede de casa seculares, um cemitério e a vista de rara beleza natural voltada para “a serra que te abraça, a aurora que te acorda, o rio que te enlaça como grande corda”, nos versos do advogado e compositor Luiz Ramalho, ao querer imortalizar sua terra na canção “Santa Fé”, gravada por Amelhinha, disponível no You Tube.

P S – O escritor Otacílio Cartaxo, em conto do livro “Homens e bichos”, pela voz de personagem fala que os Guimarães são os antigos Viriatos… 

Mártir do Partido Liberal. O tenente João Cartaxo tem sido proclamado herói ou mártir da independência de Cajazeiras. Um equívoco, aliás, já desfeito por vários pesquisadores, em especial, João Rolim da Cunha, no livro Barra da Timbaúba, e Armando Gomes da Silva, no seu Cartaxos: Origens e Ramificações. Este foi explícito ao extremo, ao informar que a eleição de 18 de agosto de 1872 se destinava a “renovar o quadro de Vereadores para a Câmara Municipal. Nada tinha a ver com a emancipação de Cajazeiras, posto que seu desmembramento político e territorial de Sousa já se efetivara em 23.11.1863, com a promulgação da Lei nº 92, sancionada pelo Presidente da Província em exercício, Francisco de Araújo Lima.” Apesar da clareza do texto, vez por outra, ainda há quem incida no erro histórico. O tenente João Cartaxo pode ser um mártir do Partido Liberal, ele que era o seu chefe quando foi morto. Portanto, deve-se preservar a memória do jovem político como herói partidário, jamais como baluarte da independência de Cajazeiras. Ou seu patrono.

Outro equívoco é fazer do tenente João Cartaxo chefe do Partido Liberal Geopolítico Brasileiro. Um partido que nunca existiu. Muito menos no longínquo ano de 1872! Não há na literatura política do Império a mais leve referência a esse partido. Por quê? Porque sequer havia no século XIX a palavra “geopolítica” na língua portuguesa! Pode-se atribuir a suposta filiação do tenente João Antônio do Couto Cartaxo ao tal PLGB ao excesso de entusiasmo do saudoso escritor Otacílio Dantas Cartaxo pelos estudos da geopolítica, de que se fez arauto, e até escreveu o livro O Problema Geopolítico Brasileiro, incluindo um inusitado projeto de Constituição Geopolítica do Brasil. Tudo a seu modo, trafegando nos limites do real com o imaginário, do folclórico, repleto de amor às coisas do sertão. Sempre. Amor e irreverência literária.

Convém esclarecer melhor outros pontos históricos obscuros. No tempo da Monarquia brasileira, havia dois partidos políticos, Liberal e Conservador, que se revezavam no comando do Parlamento e do Gabinete de Ministros, à sombra do Poder Moderador, inerente ao imperador Pedro II. As mudanças políticas ocorridas na Corte se projetavam nas províncias, nos municípios e até nas mais distantes povoações, como Santa Fé, por exemplo, onde a presença mais forte do Estado se materializava no cargo de subdelegado. Pois bem, desde que o município de Cajazeiras foi instalado, após sua criação em 1863, o Partido Conservador reinou em nossa terra, muito embora o Partido Liberal congregasse o bloco político hegemônico. Portanto, os primeiros prefeitos de Cajazeiras (padre José Tomaz de Albuquerque, Manoel Cezário de Albuquerque, João Pires Ferreira e João Franco de Albuquerque) integravam os quadros do Partido Conservador. Assim foi naquele tempo. 

É bom recordar que, nos seus primeiros anos de existência, o município de Cajazeiras se estendia até o distrito de São José de Piranhas que, por sua fez, incorporava o povoado de Santa Fé, onde mandava o chefe do Partido Conservador, alferes João Pires Ferreira, acusado de ser o responsável pelo massacre eleitoral de 1872. Por isso, e só por isso, houve o tiroteio e as mortes na Praça da Matriz, porque se dependesse dos chefes cajazeirenses do Partido Conservador não estaríamos ainda hoje, 143 anos depois, a aborrecer o leitor, com exumação de defuntos.

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