A cortesã das Mangueiras

LUIZ CARLOS ALBUQUERQUE

Tito Plauto (230 a.C. – 180 a.C.) foi um dramaturgo romano cujas obras inspiraram muitos autores ao longo das gerações e mostram instantâneos de interesse histórico. Tudo indica que as prostitutas de Roma tiveram muito de sua atenção. De acordo com seus relatos, sabe-se que exerciam a atividade em lugares chamados covil ou lupanar em razão de costumarem uivar como lobas para atrair a clientela. Prática em desuso, felizmente, para o sossego de certas artérias de algumas grandes cidades. Até hoje a palavra lupanar (em latim – covil de lobas) está em uso e é sinônima de bordel, cabaré, etc. mero resquício de uma história que antecede em muitos séculos a Era Cristã. Não será difícil encontrar em tempos ainda mais remotos as suas pegadas pois, de fato, há notícia na figura da senhorita Shamhata, por exemplo, citada na lenda de Gilgamesh, a mais antiga narrativa épica que se conhece, datada de 2.500 a.C. e ainda, na Atenas do século VI a.C. quando já era objeto de regulamentação e recolhia impostos ao Estado. Não esquecendo que também na Bíblia, nos livros mais antigos, existem referências e a condição é alvo de considerações.

Na Grécia, desde a antiguidade clássica e até em períodos próximos da Era Cristã, a sexualidade foi praticada de maneira bastante tolerante, sem estigmas ou remorsos e pelos tempos afora as hetairas (do grego – meretriz, cortesã) estiveram ativas, na labuta. Houve épocas que lhes foram mais difíceis com perseguições, criminalização da atividade e a formação de um indelével estigma. Mesmo com certa leniência entre a população e até, às vezes, sendo objeto do apreço de intelectuais, escritores, poetas e artistas, a profissão nunca conquistou o status de ofício desejável e corriqueiro. Talvez uma tentativa de justificação esteja contida na frase do protagonista de Memorias de mis putas tristes, de Gabriel Garcia Márquez, quando ele pondera que “El sexo es el consuelo que uno tiene cuando no le alcanza el amor”. O entendimento coletivo parece ser que prostituir-se significa a opção extrema para a sobrevivência, a última triste escolha. Pertencer a tal casta representa um anátema e o juízo moral está sumariamente emparedado na sentença de Santo Agostinho, dita há cerca de 1.700 anos – “se a prostituição for banida da sociedade, a luxúria trará desordem”.

“Com o advento da industrialização e o crescimento das cidades, no Brasil do começo do século XX, a efervescência da vida urbana tornou famosas algumas donas de bordel, como Susana Castera, no Rio de Janeiro. Sua elegante pension d’artiste recebia personalidades da vida pública de então, como o chefe de polícia Cardoso de Castro. Outro de seus assíduos frequentadores era o barão do Rio Branco.” (Uma breve história do sexo, Claudio Blanc, Edit. Gaia, 2015) Ou seja, no Brasil e em quase todo o mundo o lenocínio mostra-se instituição consolidada e prestigiada, de uma certa forma inconfessa, por todas as classes sociais. Em tempos recentes serve de exemplo o caso da italiana Patrizia D’Addario, remunerada com 2 mil euros para fazer sexo com o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, segundo o jornal “La Repubblica”.

E assim, depois desse apressado passeio em terreno escarpado, lembro o falecimento da cidadã paraibana, aos 81 anos, Lilia das Mangueiras, que fez vida em Cajazeiras, PB, como prostituta e cafetina de longa carreira. Tornou-se nacionalmente conhecida quando um vereador petista, Severino Dantas (PT), em 1998, tentou, talvez por gratidão ao seu eleitorado, homenageá-la com o título honorário de cidadã cajazeirense, projeto que naufragou com os votos contrários de todos os demais vereadores. Pelo inusitado, o assunto foi pauta do Fantástico onde D. Lilia explicou: “Eu não tenho vergonha do que faço, porque não acho nada demais”.

A partir daí o espírito galhofeiro do povo teve sua deixa e, segundo matéria do maispb.com.br de 21/4/2021, “intelectuais e populares entregaram um título simbólico: “Lilia. A mulher que ensinou Cajazeiras a amar”, numa espécie de retaliação maliciosa.  Como se sabe, o burgo detém há muito tempo o slogan de “Cidade que ensinou a Paraíba a ler” o qual faz inteira justiça à história secular iniciada com o educador Pe. Inácio Rolim e seu colégio onde estudaram, por exemplo, o Pe. Cícero e o Cardeal Arcoverde, entre tantos outros. Marcar a cidade-polo do semiárido, diocese e centro universitário que conta mais de vinte instituições de ensino superior, aí incluindo duas faculdades de Medicina, e uma população trabalhadora, esclarecida e politizada, com tal debochado bordão seria enfatizar um detalhe menor e comum a qualquer comunidade de qualquer lugar. Na realidade, Cajazeiras já tem na sua missão o seu próprio destino – ser essa ensolarada e acolhedora “cidade que ensinou a Paraíba a ler”. 

LUIZ CARLOS ALBUQUERQUE É PSIQUIATRA E ESCRITOR

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