O milagre

VALIOMAR ROLIM

A esposa de Seu Grosso, assim chamado por ser de baixa estatura e muito gordo, achou muito esquisito aquele pedido, era grande a quantidade de ovos e tomates para que o mágico usasse no show… mas, como as coisas andavam cada vez mais estranhas e não queria posar de má vizinha para os diretores do Clube 1º de Maio, atendeu.

Aquela solicitação aguçara sua curiosidade. Tanto tempo morando na vizinhança do clube e nunca tivera vontade de assistir a um show como agora, nem quando Nelson Gonçalves e Ângela Maria ali se apresentaram. Agora, com aquela troupe desconhecida, que dizia-se contratada do canal 2 do Recife, vinha o desejo inexplicável de ir ao clube, com certeza não era para ver a banda Artz Antunes, o mágico Professor Jafar, a cantora Marlene nem o cantor cego Sérgio Roberto, de quem as rádios tanto falaram durante toda a semana.

O diabo é que estava muito tarde para decidir ir ao show, não havia força humana capaz de levantar Grosso da rede e, com as primeiras pessoas já entrando no clube, era impossível conseguir vestir-se e pintar-se a tempo, restando-lhe uma única saída, postar-se no poleiro que os meninos haviam montado onde, desde há muito tempo, assistiam as atrações contratadas pelo clube.  

Tinha tanta gente que mal dava para ver o palco e ela, pouco a vontade naquele lugar e temendo ser vista pelos conhecidos, mesmo assim, viu as pessoas que foram a sua casa a procura dos ovos e tomates. Não assumiam a postura de diretores de clube nem de auxiliares do espetáculo, muito pelo contrário, estavam postados na platéia, comandando a bagunça em que estava se transformando aquele recital, se assim poderia ser chamado.

Eram os Penetras que, fazendo jus a sua fama de turma que acontecia, já regiam o concerto de vaias, gritos e apitos que se daria a seguir. O locutor anunciou a banda Artz Antunes e o barulho diminuiu dando a impressão que a zoada era apenas o nervosismo característico da espera do início do show, todos começaram a dançar e a festa se instalou.

Foi anunciado o professor Jafar e até que apareceram alguns aplausos, o público ficou entre a indiferença e a pouca atenção até que, Diener, despontando para a grande carreira de presepeiro que teria de cumprir, começou a atrapalhar a apresentação do, já nervoso, ilusionista. Inicialmente foram as pilhérias, depois foi catucando daqui e dali, até que o mágico se atrapalhasse nos menores truques provocando risadas que foram se espalhando e redundaram na mais generalizada vaia.

Para continuar o espetáculo introduziu-se a cover da cantora Wanderleia, a cantriz Marlene que, de biquíni, só conseguiu aflorar nos assistentes, meio bêbados, os instintos libidinosos mais bestiais, pondo-os a tentar palpar-lhes as pernas e coxas fazendo-a recuar até o fundo do pequeno e baixo palco, durante toda a única música que conseguiu cantar.

Os promotores do evento queimaram o último cartucho e apresentaram Sérgio Roberto, aquele que, mesmo sendo cego de nascença, começava a brilhar, como estrela de primeira grandeza, para uma carreira fulgurante no mercado fonográfico. Tentou-se fazer uma apoteose. Ao ter seu nome bradado no serviço de som, o cantor entrou no palco com a postura característica dos cegos. Quando lhe entregaram o microfone, estendeu a mão tateando no ar para, só depois, apanhá-lo.

Começou a cantar seu maior ( e único?) sucesso, a música eu sou um cego, cantava, quando foi lançado o primeiro petardo, um ovo que, de tão rápido, parecia menor. O cego baixou-se de repente e, do poleiro, nossa assistente vibrou, graças a Deus aqueles desalmados não acertaram, que maldade sem tamanho aquela. Veio o segundo tiro, um tomate. Mais uma vez o cantor curvou-se abruptamente, o projetil estourou no fundo do palco e nossa assistente voltou louvar por mais aquela intervenção divina.

Os Penetras se assanharam, foram vários arremessos simultâneos. Diante daquela enxurrada, Sérgio Roberto curvava-se, baixava-se, contorcia-se e fazia um balé tão grotesco que a platéia, apesar de pender entre a hilaridade e a solidariedade, produziu um barulho tamanho, que abafou o som do cantor e banda.

No poleiro nossa crédula assistente travava com os filhos e demais assistentes a mais ferrenha discussão.

Como é que não se admitia que houvera um milagre?!

DO LIVRO ‘O CRONISTA DO BOATO’, DE VALIOMAR ROLIM

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicações relacionadas
CLIQUE E LEIA

Promacon

Promacon – Projetos, Materiais e Construções Ltda.Janeiro/1999Gazeta do Alto Piranhas
Total
0
Share