O voo da guará vermelha

Peão da construção civil, carregado de angústia, num domingo à tarde, bate pernas pela cidade grande e encontra uma desolada prostituta, ansiosa por grana para remeter à velha de “braços encarquilhados”, que cuida do filho. Assim, num encontro à toa de dois excluídos, começa O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende. A partir daí, desenvolve-se singela história de amor entre Irene, já marcada pela aids, e Rosálio, trabalhador saído dos grotões em busca de sonhos. Aprender a ler é um deles.

Num prostíbulo decadente se entrelaçam vozes e corpos dos dois personagens principais. O protagonista, quase sempre, conduz a narrativa. Nascido em um ponto qualquer do sertão, Rosálio percorre veredas, encara a sujeição do trabalho escravo, o submundo do garimpo, o corte da cana-de-açúcar, a dureza de acampamento dos sem-terra e da construção civil.

Rosálio vai revelando sua vida, em colóquios com Irene (que nos seus devaneios confunde Rosálio com Romualdo, um amor juvenil), na medida em que leitor é distraído por “histórias de homens valentes que combatiam dragões, assim como Dom Quixote da história que lhe falei, romances de belas damas que aprendeu dos cantadores que ouvia cantar na feira”, como fala um personagem circunstancial.

O ritmo das vozes assemelha-se ao dos folhetos de cordel. Trechos e mais trechos nos dão a sensação de ouvir Patativa do Assaré declamar seus poemas. Ou escutar um cordelista de feira contar histórias fantásticas. Recurso ficcional de enorme efeito sedutor. Se o leitor é sertanejo, então, ele amolece o coração, se deixa mergulhar em sua própria alma e viaja ao passado. O desfecho da história confirma e expande essa emoção.

O narrador oculto interfere de modo sorrateiro, trazendo para junto dele os personagens, a ponto as vozes confundirem-se na mesma simplicidade narrativa. Técnica nem sempre explorada com o sucesso alcançado por Valéria Rezende, no que, aliás, lembra a fórmula aplicada por Lygia Fagundes Telles no conto Pomba enamorada ou uma história de amor.

O Voo da guará vermelha é figuração do Brasil real, da violência do trabalho escravo, das barracas de lona dos sem-terra, do esforço físico até a morte na palha da cana. Brasil cruel. Tal qual a vida de uma prostituta aidética e um trabalhador analfabeto que, no final do romance, se contorce para agarrar-se ao sonho de menino nascido nos confins do mundo.

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