A pipa de Butler

A ignorância está na raiz de toda intolerância. E não falo da ignorância produzida por uma modernidade “esclarecida” que qualifica alfabetizados e desqualifica analfabetos, inventando mundos distintos e nomeando homens e mundos a partir de uma classificação política determinada pelo acesso, ou não, ao mundo escolar.

Falo da ignorância política inventada pelo proposital desconhecimento das coisas e capaz de gerar atitudes fascistas e contextos e conjunturas de violência, massacres, mortes.  Ignorância que, bebendo na fonte de várias motivações (religiosa, política, cultural, social), vai arrebanhando adeptos incautos com a sedutora magia da supremacia, da divisão entre bons e maus, santos e pecadores, belos e feios, homos e héteros, bruxas e virtuosas. Uma divisão que não permite questionamentos, mas aceita obediência servil. E quando se divide a compreensão do todo constituído e instituído por partes únicas e peculiares se dilui na quimera dos melhores e piores, dos bons e dos maus, dos eleitos e dos excluídos.

E a humanidade, em sua histórica trajetória neste nem tão mais azulado planeta, é farta em momentos de horror, massacre, eliminação, justificados por esta ignorante divisão de mundo entre santos e pecadores, cristãos e gentios, arianos e judeus, homens e mulheres, héteros e homos, branco e preto.

Divisão que não aceita, por exemplo, que o Deus que habita em mim pode partilhar a mesma crença do Oxum que habita em você. E como o meu Deus é supremo, superior, único, guerras, torturas, fogueiras justificam eliminar o Deus diferente do meu, com pouca ou nenhuma relevância para quem celebra este Deus, para aquele onde este outro Deus escolheu como casa e morada. Assim, o humano do outro desaparece quando ele não mais é reflexo de minhas próprias crenças e convicções. E está armada a cena própria da eliminação.

Uma eliminação que, em reiterados momentos, se transveste de normalidade, de legitimidade, de defesa da família e de valores éticos. Assim, bandeiras são içadas, mastros tremulam insígnias, armas são inventadas, teorias são elaboradas. Tudo convergindo para a instituição de visões únicas, perspectivas solteiras, janelas ímpares. E, nestes tempos de intolerâncias, o medo se faz natural como defesa de minorias. O medo, no entanto, que dá coragem a tantas vozes que, mesmo na contramão da intolerância, são capazes de emitir seus brados dissonantes.

E, assim, a poesia da cantora paraibana Socorro Lira surge como flâmula de força, pois “quem duvida que pipa de criança também lança por terra arranha-céu?”.

Para Judith Butler que, como crianças empinando pipas, derruba por terra sólidos arranha-céus de teorias fossilizadas e areja nossos pensares, apesar de toda intolerância.

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