A morte do tenente João Cartaxo

Existe na Praça Nossa Senhora de Fátima, em Cajazeiras, um monumento dedicado ao tenente João Antonio do Couto Cartaxo, assassinado em 18 de agosto de 1872, num entrevero com adeptos do Partido Conservador. O sangrento episódio se deu no dia da eleição municipal, por isso ficou conhecido como o “morticínio eleitoral de Cajazeiras”. O fato é sempre lembrado, embora haja muita desinformação acerca das causas, motivações e de alguns personagens envolvidos. Por quê? Porque não se explica com clareza as razões do tiroteio e das mortes em frente à igreja. A distância dos fatos provoca confusão, como, por exemplo, o maior adversário do tenente morto e, sobretudo, a vincular a luta à emancipação política de Cajazeiras. Sem pretender esgotar o assunto, desejo abrir o debate histórico, devidamente contextualizado, com o intuito de tentar esclarecer pontos obscuros.

Por que a briga se deu na praça em frente à igreja?

Porque a lei eleitoral no tempo do Império determinava que as eleições se realizassem no recinto da igreja e eram precedidas da celebração obrigatória da missa. Isso mesmo, dentro da igreja. Lembre-se que o catolicismo era a religião oficial do Brasil desde a época da Colônia. Portanto, a Igreja Católica sujeitava-se ao poder civil em muitas de suas funções, à semelhança de uma repartição pública, ressalvadas algumas peculiares no exercício do poder espiritual. Os pleitos, processados no interior de igrejas e capelas, eram fonte de atrito entre a Igreja e o Estado, tanto que nos 40 anos do Império, houve um sem número de conflitos entre dirigentes eclesiásticos e autoridades do regime monárquico. Tais conflitos eram causados, quase sempre, pelo desrespeito aos templos católicos em dia eleição, quando reinava enorme “balbúrdia, confusão e, não raro, o crime”, como escreveu o jornalista e escritor Nilo Pereira, em livro sobre a matéria.

O massacre eleitoral de Cajazeiras, em 1872, não ocorreu dentro da igreja porque, segundo Deusdedit Leitão, o vigário, padre Henrique Leopoldino da Cunha, impossibilitado de penetrar no templo, foi celebrar a missa na capela da Casa de Caridade. Ora, desde cedo próceres do Partido Conservador, vindos do distrito de São José de Piranhas, comandavam cerca de 300 pessoas armadas, dispostas a perturbar os trabalhos eleitorais, como era frequente naquela época em vários lugares do Brasil. Fácil, portanto, prever o embate violento, sobretudo, pela fama de valentia e truculência do chefe da facção conservadora, o alferes João Pires Ferreira de Maria, da povoação de Santa Fé, famoso por suas ligações com grupos de temidos malfeitores, atraídos para intimidar os adversários e inimigos. Em Santa Fé muita coisa se resolvia pelo trabuco, sendo famosas as brigas de família e a presença de grupos de cangaceiros vindos do Ceará, tanto que o lugar foi amaldiçoado por dois de seus párocos, os padres Manoel Lins e José Thomaz.

Em resumo, ais aí o motivo principal do conflito entre liberais e conservadores ter se dado na Praça da Matriz, para onde se dirigiu o tenente João Cartaxo, chefe do Partido Liberal de Cajazeiras, à frente de 50 homens armados. Em próximos textos falarei do “estranho” alferes João Pires, que foi prefeito de Cajazeiras, de equívocos a respeito de Santa Fé, bem como do heroísmo pela libertação de Cajazeiras, do Partido Liberal Geopolítico e outros aspectos históricos da época.

CAJAZEIRAS VERSUS SANTA FÉ

O assassinato do tenente João Cartaxo não resultou de uma disputa político-eleitoral entre cajazeirenses, embora tenha envolvido dois partidos políticos. O Partido Liberal, o mais forte, foi organizado pelo comandante Vital Rolim quando Cajazeiras era simples povoação do município de Sousa. Comandante Vital recebia a orientação do padre José Antônio Marques da Silva Guimarães, vigário, deputado e chefe político de Sousa durante muitos anos. O Partido Conservador se formou em torno dos descendentes de Francisco Lins de Albuquerque, um pernambucano, segundo Deusdedit Leitão, atraído ao sertão do Rio do Peixe pelos herdeiros do sesmeiro Luiz Gomes de Albuquerque, o pai de Ana Francisca de Albuquerque (Mãe Aninha).

Francisco Lins de Albuquerque é considerado o fundador de Nazarezinho. No começo de século XIX, fixou-se no lugar chamado Pico que, anos depois, floresceu, tornando-se povoado, vila e, finalmente, a cidade de Nazarezinho. Casado com Francisca Catarina de Sena, ele deixou entre os muitos descendentes, Manoel Cesário de Albuquerque e João Franco de Albuquerque, que migraram para Cajazeiras, onde exerceram atividades políticas, tendo sido prefeitos no tempo do Império. Suponho que nessa linhagem familiar, tem raiz a oposição ao bloco político hegemônico dos Rolim, Coelho e Cartaxo. Raiz estendida à Primeira República por intermédio do coronel Justino Bezerra, cuja esposa, Maria Rosalina Dantas, era neta de João Franco de Albuquerque. Este se instalara na fazenda Serra Vermelha. Lembro esses detalhes para realçar que o Partido Conservador em Cajazeiras provinha, como o Partido Liberal, de origem familiar semelhante: o velho desbravador do sertão Luiz Gomes de Albuquerque. Diferente do alferes João Pires Ferreira de Maria, que tinha outras raízes. João Pires foi acusado, formalmente perante a Justiça, de ser responsável pelo conflito armado no dia da eleição de 18 de agosto de 1872, embora não estivesse presente na hora do tiroteio.

Na Monarquia, conservadores e liberais se revezavam no governo, formando o Gabinete que representava o poder executivo, conforme a organização administrativa naquela época. Ora, quando um partido comandava o Gabinete havia substituição, de cima a baixo, dos ocupantes dos cargos públicos. Pois bem, o morticínio de Cajazeiras se deu sob a égide do Partido Conservador, sendo Manoel Cesário de Albuquerque o prefeito nesse período.

Outra coisa, a partir de 1863, São José de Piranhas passou a integrar o então recém-criado município de Cajazeiras, incluindo Santa Fé, um florescente povoado. Segundo Messias Lima e Marconi Vieira, “A sede da Freguesia de São José se constituía em reduto eleitoral do Partido Liberal, enquanto o Distrito de Santa Fé era eminentemente conservador.” E o alferes João Pires mandava em Santa Fé. Por isso, foi para lá que ele se dirigiu após o entrevero ocorrido em Cajazeiras. Com estes dados históricos, desejo mostrar que o massacre de 1872 se deu entre os liberais de Cajazeiras e a facção do Partido Conservador de São José de Piranhas, mais especificamente de Santa Fé. Pouco se sabe do envolvimento ostensivo dos líderes conservadores da vila de Cajazeiras naquele episódio sangrento. Assim, pode-se concluir que em 1872 a disputa pelo poder se deu de forma sangrenta por causa da recente incorporação a Cajazeiras do conturbado lugarejo de Santa Fé.

ALFERES JOÃO PIRES FERREIRA

Chefe do Partido Conservador de Santa Fé, João Pires foi acusado de ser cúmplice do massacre eleitoral de Cajazeiras de 18 de agosto de 1872. Em julgamento na primeira instância ele foi absolvido, o que levou a família do tenente João Antonio do Couto Cartaxo a apelar da sentença ao Tribunal da Relação, por iniciativa de Anna Josefha de Jesus, mãe da vítima. Ela nomeou como procuradores famosos advogados no Recife: Joaquim José da Fonseca, Gurgel do Amaral, Aprígio Guimarães. A decisão do Tribunal foi favorável à apelante, sendo o Processo devolvido a Cajazeiras para novo julgamento.

O jovem advogado Neuribertson Monteiro Leite elaborou trabalho acadêmico com base em partes do Processo, por ele localizadas nos arquivos da comarca de Cajazeiras, onde presta serviço como oficial de justiça. O estudo, concluído em 2012, fez parte de suas tarefas como aluno do doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Nele encontram-se preciosos dados do lamentável episódio, significando valiosa contribuição ao conhecimento de nossa história política. Apesar de esforços como este e de relatos de pesquisadores, memorialistas, historiadores e de estudiosos do nosso passado continua a existir profunda ignorância a respeito do alferes João Pires Ferreira, o “vilão” do morticínio de 1872, segundo a tradição oral e registros históricos.

Quem era o alferes João Pires Ferreira?  Pouco se sabe além de sua condição de chefe do Partido Conservador de Santa Fé, um lugar estigmatizado pela violência, por encrencas familiares, coito de bandidos e perseguições de toda espécie sob o primado da bala, da faca e do punhal. Sabe-se também que ele foi suplente de juiz municipal e prefeito de Cajazeiras nas décadas de 1860 e 1870, quando estava de cima no Brasil o Partido Conservador. Deusdedit Leitão informa que João Pires Ferreira nasceu em São José de Piranhas e traça dele um perfil adverso: “Voluntarioso e agressivo, era um espírito fascinado pela volúpia do quero, posso e mando. Gostava de impor aos outros o poderio de sua vontade, pouco importando-lhe o juízo que fizessem de sua conduta, como homem forte e decidido.” Prefeito eleito em 1868, reconduzido em 1872, segundo Deusdedit, a gestão do alferes “foi um período de agitação política para Cajazeiras”. Os adversários o acusavam de atos de perseguições, como o fechamento da botica de Dyonísio Afonso Daniel, a única então existente. Atribuem a ele a “soltura do facínora Geminiano Barbosa, conhecido por Gesuíno de Santa Fé, que, dois anos depois, seria um dos bárbaros chacinadores do tenente João Cartaxo”.

Os liberais de Cajazeiras, em matéria divulgada no jornal A Província, do Recife, apontavam guardas-costas do alferes João Pires como os assassinos do sargento Antonio de Souza Marques e de Saturnino Rodrigues Barrento. Na condição de subdelegado de Santa Fé, Barrento cumprira, com ajuda de Marques, diligência policial determinada pelo presidente da província da Paraíba, Francisco Teixeira de Sá, após o episódio sangrento de Cajazeiras. João Pires, além de instigador do massacre eleitoral de Cajazeiras, teria sido também o mandante do assassinato do sargento Antonio Marques e do subdelegado Saturnino Barrento. Conclui-se, portanto, que o alferes João Pires Ferreira agia com base no terror, no medo, vingando-se com violência.

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