A conferência de Dom Hélder

O Teatro Santa Roza nunca recebeu um público tão numeroso quanto naquela noite do dia quinze de agosto de 1968. Por medida de precaução e para permitir que a multidão que se aglomerava no interior daquela casa de espetáculos e na Praça Pedro Américo pudesse ouvir a conferência de Dom Hélder Câmara, os organizadores do evento decidiram transferir para a rua a realização do evento. Num palanque improvisado, em cima de uma camionete com “alto-falante”, o arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, deu início à solenidade de instalação do Instituto de Formação para o Desenvolvimento, saudando o conferencista. Logo depois, o economista Ronald de Queiroz fez também um pronunciamento de apresentação da grande atração da noite, classificando-a como “o mais atuante humanista da América Latina”.

Ao iniciar seu pronunciamento, Dom Hélder referiu-se “à beleza que representa uma praça ocupada por um povo sedento e faminto de verdade e justiça”. Transcrevo, a seguir, alguns trechos da conferência de Dom Hélder:

“Nosso povo está marginalizado e é terrível ficar à margem. Não só a população do Brasil, mas da América Latina e de todo o terceiro mundo está à margem do desenvolvimento econômico, social, educacional, moral e religioso.

Não atacamos pessoas quando denunciamos estes problemas. São estruturas antigas, caducas e injustas que terão de ceder. E quando caírem, quando cederem, desejo que os nossos centros de reflexão tenham encontrado as estruturas acertadas. É possível que alguém ainda pergunte porque a Igreja se intromete em tais assuntos. E eu respondo que nós nos sentimos em dívida, em atraso com as massas. Durante três séculos celebramos missa na “casa grande”. E como nós lá poderíamos falar aos escravos, aos oprimidos, a não ser dizer-lhes da necessidade de aceitar o sacrifício? E esta pregação era excelente para o opressor. Já há uma violência instalada no Brasil, porque apesar do 13 de Maio, privilegiados continuam oprimindo, e isto é uma violência.

Por uma questão de realismo. Não vou apresentar argumentação religiosa para dizer que não há porque partir para a violência. Mas não venho convidar o povo a deixar como está para ver como é que fica. Uma guerra libertadora seria esmagada por uma guerra imperialista. Os Estados Unidos têm na América Latina sua grande zona de influência e não admitiriam uma guerra libertadora, para cá viriam com toda sua potência. E teríamos esta pátria transformada em um grande Vietnã. Deus nos livre de pregar uma luta desse tipo. O Movimento de Pressão Moral Libertadora baseia-se em três artigos dos Direitos do Homem, proclamados há vinte anos pela ONU e aceitos pelo Brasil: a) não é admissível nenhuma escravidão, nenhuma servidão. Vamos pressionar para que elas deixem de existir e usaremos métodos de conscientização da opinião pública; b) todo homem tem direito à vida e à sua segurança pessoal. Segurança e vida que desaparecem quando ele se propõe a lutar pelos seus direitos, indo à praça pública ou ingressando num sindicato; c) todo homem tem direito ao trabalho que garanta a sua subsistência.

Mas vejam a imagem do Nordeste, o quadro é desalentador. Os estudantes carregam uma responsabilidade muito grande. Quem chega a uma escola superior é um privilegiado e se sente obrigado a analisar certos problemas, além de ser tradição universitária a luta por grandes causas nacionais, exemplificando Castro Alves e Rui Barbosa, que eram jovens universitários ao lutarem pela abolição da escravatura. Sem eles não teria havido o 13 de Maio. O estudante tem o direito de obter ou de arrancar a sua liberdade de expressão. Todas as forças morais precisam se unir e vocês têm obrigação de se interessar pelos problemas”.

Ao final da sua palestra, Dom Hélder foi advertido por alguns estudantes de que viviam um momento de tensão, que os inibia de participarem de uma forma mais livre da conferência, fazendo as perguntas que desejavam fazer. Denunciaram que sete colegas universitários tiveram a prisão preventiva decretada e isso deixava a todos, temerosos de novas formas de repressão. Na Praça Pedro Américo, a presença de agentes do DOPS e policiais militares era ostensiva e ameaçadora. Dom Hélder, então, decidiu encerrar seu pronunciamento concitando a população a dar uma demonstração de responsabilidade e de autocontrole, retornando às suas casas tranquilamente, sem qualquer manifestação que pudesse ser compreendida como atentado à ordem pública. Impressionante a forma como o povo atendeu seu apelo. A multidão se dispersou calmamente não se registrando qualquer incidente que empanasse o brilho do acontecimento histórico daquela noite.

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