A casa e o botão

Que horrível, meu Deus, fazer uma coisa dessas, reage ao ler a página policial, mãos trêmulas, a mente confusa, imagens difusas sobrepostas saídas da memória. Aquele crime praticado por uma dona de casa, que está na manchete do jornal, entra em sua alma. Ainda bem que não completou.

Sacode longe o jornal amassado. Um sentimento forte, pensa, invadiu o coração daquela infeliz, a tesoura ainda na mão, o remorso crescendo, crescendo, crescendo: meu amor, desculpa meu bem, perdi a cabeça… já era tarde.

Falsa! Como pode ser tão falsa, rumina pedaços de frases lidas, palavras soltas a povoar-lhe a mente até que uma imagem forte se agiganta no tumulto que se fez em sua cabeça. Sua mãe. A figura embaçada da mãe, sentada numa cadeira de balanço, aproveitando a claridade do sol para cozer as roupas dos filhos. Ela, ali num canto, segurando a tesourinha, a olhar o movimento dos galhos verdes ao vento brando da tarde, folhas secas caindo no chão, o voo suave do sabiá rumo ao pouso noturno. Mais sente do que ver.

Olhar fixo na tesourinha, a mãe corta as pontas de fios, uma a uma. Derrama carinho no conserto da casa onde se aloja o botão. Um agasalha o outro, ri baixinho. A casa e o botão.  Ela sabe que o dono da roupa está ali, disfarçado de botão. Concentra-se no trabalho, o amor materno preso naquele gesto simples de cortar pedacinhos de fios inúteis para que o filho possa mostrar-se muito bem vestido na escola, na rua, no trabalho, nas festas. Diante da namorada. Camisa passada, velha, mas engomada. O botão no lugar certo, a borda da casa alinhavada com esmero. Com amor de mãe, ainda que fosse para o gozo do olhar da namorada, de seu toque, afeita a deslizar os dedos nos botões do seu jovem filho. Ora, ora e eu não via os dois, agarrados, pelo ensombrado do quintal!

Que horrível, meu Deus!

Como pode tamanha barbaridade! Apanha no chão a página amassada em busca de explicação para o gesto tresloucado de ciúme. Meu Jesus, quase mata o marido a golpes de tesoura, justo no pedacinho do corpo mais sensível aos atos de amor, clímax da febre da paixão! Alvoroça a mente, agita o corpo, eleva a alma. Larga o jornal na cadeira, com um murmúrio e suspira. Ri, aliviada. Sorte que não havia ninguém mais na casa para notar o brilho insinuante do olhar. Ufa, ainda bem que aquela maldita não consumou o crime com a arma de trabalho. Quem sabe, a desesperada tenha desejado o contrário, armar-se de desejo.

Suspira e volta à casa e ao botão.

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