Enterro simbólico de monsenhor Milanez

João Batista Milanez (1881-1930), que nasceu em Guarabira e ordenou-se padre em 1904, dedicou sua vida inteira à educação. De início, em Natal, depois na capital da Paraíba. Foi professor, diretor de colégios e da Instrução Pública, cargo equivalente hoje ao de secretário de Educação. O areiense Solon de Lucena era presidente da Paraíba (1921-1924), quando monsenhor Milanez, então diretor da Escola Normal, viu-se envolvido em inusitado crime, que passou à história como “o caso Sady e Ágaba”.

Narro como foi.

Naquela época, os rapazes estudavam no Liceu Paraibano, as moças na Escola Normal. Para “proteger” as donzelas normalistas, o diretor Milanez determinou que os alunos do Liceu não poderiam aproximar-se das meninas. Inventou uma “linha da decência”, a partir da qual um guarda civil, armado, cedido pelo chefe de Polícia, Demócrito de Almeida, diligenciava para cumprir sua ordem. Pois bem, num sábado à tarde, 22 de setembro de 1923, o estudante Sady Castor estava diante da Escola Normal à espera de sua namorada, Ágaba Medeiros. Foi advertido pelo guarda civil Antônio Carlos Menezes, aqui não pode ficar! Houve bate-boca. Sady recebeu voz de prisão e reagiu, ele que servira ao Exército 4 anos e já era homem feito. Uma bala o abateu. O guarda foi preso em flagrante. Embora socorrido na casa de um parente próximo, Francisco de Gouveia Nóbrega, Sady morreu. A comoção se espalhou, explodindo em indignação contra o governo.

O velório de Sady Castor no Liceu virou o centro de gigantesca reação, insuflada por inflamados oradores. Dias seguidos, a imprensa repercutiu o episódio, as passeatas, o enterro simbólico de monsenhor Milanez. Solon de Lucena o exonerou a pedido.

Sady Castor Correia Lima, nascido em Soledade, era dos Nóbrega, tradicional família do vale do Sabugi e das Espinharas. Ele faleceu na residência do advogado Gouveia Nóbrega, que tinha sido promotor, juiz e deputado estadual (1896-1899), por mera coincidência, a mesma legislatura em que meu avô, major Higino Sobreira Rolim, representava Cajazeiras assembleia paraibana. Por sua vez, Ágaba Gonçalves de Medeiros, bem mais jovem do que Sady, era filha do coronel José Peregrino de Gonçalves de Medeiros, inspetor da alfândega. Portanto, os dois jovens pertenciam a grupos familiares importantes na, então, acanhada Paraíba.        

Para piorar a situação, a jovem Ágaba cometeu suicídio, na tarde de 6 de outubro, deixando cartas de despedida. Isso agravou mais ainda a situação do governo Solon de Lucena, debaixo da exploração política do comovente episódio. Ficou abalado a tal ponto que mereceu crônica de Ramalho Leite, quase um século depois, com este título: “O crime que vitimou um estudante e quase derruba um governo”.

Tudo isso foi mexido e remexido, em recente estudo acadêmico do professor Favianny da Silva, resultando na tese de doutorado (2014), na Universidade Federal do Ceará: “O caso Sady e Ágaba: o crime da praça Felizardo Leite e a revolta dos estudantes do Grêmio 24 de março”, disponível na internet. São mais de 200 páginas, com base em extensa bibliografia, jornais, documentos inéditos, processos criminais. Anos de pesquisa. A sociedade paraibana do começo do século XX esmiuçada: costumes, educação, urbanismo, imprensa, política. Não sei se a tese foi aprovada.

Surpresa.

O estudo é precedido de um poema, “Morrer”, dedicado ao “inesquecível colega Sady Castor”. Quem o escreveu? O cajazeirense da Serra da Arara, Amaro De Lyra e César, então, bedel e aluno do Liceu. Mais tarde, juiz e desembargador em Pernambuco.    

P S – Monsenhor Milanez, passado o impacto emocional e político do trágico acontecimento, meses depois, voltou à direção da Escola Normal, ali permanecendo até o final da gestão de João Suassuna (1924-1928). Faleceu de “cruel enfermidade”, em 12 de janeiro de 1930. 

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